quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Eu gosto do Natal

Eu gosto do Natal. Um homem e uma mulher; o nascimento de uma criança, testemunhado por ovelhas e pastores, incensado por presentes de desconhecidos; uma noite; uma estrela. O presépio.
O nascimento de uma criança: abraços da família; comidas feitas com amor; um sino verdadeiro de Papai Noel, tocado pelo vizinho...; alguém mal arrumado na farda vermelha e branca. Nossa casa.
A chegada de uma criança, isso me comove e me dá esperança. Que essa esperança nos abrace na noite de hoje!

FELIZ NATAL!

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Clube do livro – para quem não tem tempo a perder!

“Há algo que você sempre pode dizer às pessoas que querem aprender mais sobre o mundo e não sabem como achar uma causa para apoiar. Você sempre pode mandar que elas leiam” (Clube do livro do fim da vida).

No último setembro arrancado da folhinha, eu fiz uma chamada para a constituição de um CLUBE DO LIVRO. A ideia não nasceu de uma inspiração particular. Eu tinha lido, em 2013, o Clube do Livro do fim da vida de Will Schwalbe, sugestão de uma grande leitora e que rendeu muito em minha própria vida. Vi aquele filme fofo Clube de leitura de Jane Austen (eu adoro Persuasão e Orgulho e Preconceito, nessa ordem...), de 2007. Depois de tudo, eu ainda ministrei uma disciplina na Pós sobre A memória, a história e o esquecimento de Paul Ricoeur, que funcionou como um clube do livro. Em uma das aulas, eu disse que tinha vontade de me livrar da grande vergonha de não ter lido alguns livros importantes, incríveis, e que, por várias razões, ficaram para trás. Descobri que meus alunos também tinham frustração semelhante e, juntos, arquitetamos um clube do livro, que funcionaria no semestre seguinte. Eu ainda demorei uns 2 meses para fazer a chamada. Convidei amigos, amigas, os alunos da turma com quem dividi minha vergonha e outros alunos da Graduação.
Quando convidei meus amigos e amigas, fiquei muito constrangida ao receber as negativas cheias de verdade de sua falta de tempo. Alguns se admiraram com o fato de eu encontrar tempo para isso! Nova vergonha... O fato é que nunca achei esse tempo, mas como afirmou Kabat-Zinn: “Você não pode parar as ondas, mas pode aprender a surfar”. Minha desculpa, ou minha escolha por esses amigos e amigas, foi que há pessoas a quem a gente quer tão bem ou ama tanto que deseja até a intimidade de uma leitura comum!
Que leitura foi essa? Desde muito antes da disciplina da Pós, eu me ressentia de nunca ter lido Em busca do tempo perdido de Marcel Proust, que eu via tão citado por toda a parte que eu queria bem! Pois foi essa a proposta de leitura. Ela atraiu 9 pessoas que, ao longo de 3 meses, leram o primeiro volume e se encontraram de 15 em 15 dias para trocar impressões. Desde o primeiro dia, prometi que não seria a professora do clube, mas a animadora. Uma das participantes denunciou o prazer que senti ao manipular retratos de Proust para divulgar os encontros do clube... Eu me animei! No dia 19 de dezembro, 5 sobreviventes terminaram No caminho de Swann. Tiramos uma foto desafiadora, mesmo sabendo que faltam 6 volumes para resgatar esse tempo perdido...
Nesses 3 meses, só  para o primeiro volume(!), um outro foi escrito para recontar os desafios que enfrentamos. As culpas recaíam todas sobre outras... leituras! Imaginei grandes duelos entre meus livros e os dos meus alunos, sangue escorrendo de nossas mãos. Eu me vi cortejada por palavras sedutoras que me convidavam a renunciar a meu compromisso com os documentos que disfarçam as realidades... O pensamento preso em Swann e em Odette. Prisioneira de amores ilícitos, eu!?!
O meu volume tem as margens preenchidas pelo meu encantamento. Já consagrei meu tempo a pensar nessas anotações que fazemos aos livros “Cochichos nas margens...”: http://literistorias.blogspot.com.br/2015/09/cochichos-nas-margens-sobre-as.html Sugeri aos sobreviventes a recolha de frases que seriam como aforismos proustianos, divulgados para atrair novas adesões ao clube! Alguém mais se anima? Proust nos deu muitas frases para pensar e inspirou novos gostos gastronômicos...

Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados na valva estriada de uma concha de S. Tiago.

Fome...
Eu já tenho compromissos para o ano que vem, definidos na agenda que comprei ontem pela manhã e já tenho o desvio – “o meu tempo não vale tanto assim”, é Francisca quem o diz no 1º volume... Em janeiro, não haverá encontro do clube e, em fevereiro, retomamos a leitura, a partir do segundo: “A sombra das raparigas em flor”. Isso significa que há TEMPO (!) para novas adesões e talvez a gente só consiga mesmo “mais tempo” na vida lendo!

A quem seguiu esse texto até agora, eu desejo muitas páginas escritas e lidas (na solidão do quarto ou em clubes do livro) em 2016 e um Natal tão cheio de verdade quanto o do conto “Natal” de Miguel Torga!


terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Documento do NEMED sobre a BNCC - importante!

Tenho a honra de publicar em meu blog o documento produzido pelo meu laboratório de pesquisa, o NEMED: http://nemed.he.com.br/ sobre a BNCC. O documento é longo, mas o que está em jogo - a formação de crianças e adolescentes - merece que consagremos nosso tempo à leitura.

Documento do NEMED sobre o BNCC História.
Ensino Médio

Este componente curricular não pode se realizar de forma concreta em sala de aula devido à absoluta falta de conteúdos fornecidos no Ensino Fundamental sobre os temas que no Ensino Médio deveriam ser discutidos. Não existem rupturas na História, os processos e transformações não podem render-se a opções e focos demasiado restritos em detrimento da sua plena compreensão. A História, ciência dos homens no tempo, e as reflexões que propõe são um dos fundamentos primeiros da formação de cidadania, no entanto, pode se transformar em instrumento ideológico quando se centra exclusivamente neste ou naquele contexto como alguns povos ou algum país. A necessária discussão das construções ideológicas que propunham a primazia de uns povos sobre outros no passado utilizou-se destes mesmos mecanismos de seleção. Apenas fornecendo conteúdo crítico e atualizado dos contextos históricos, como um todo, facultaremos instrumentos para que o aluno, com apoio do professor e de bibliografia de qualidade e atualizada seja capaz de construir seu censo crítico. A discussão da natureza e fins das ideologias enquanto construções parciais da realidade deve ser apresentada, pois estas propõem respostas e soluções generalizantes e limitadoras das liberdades e a desconsideração das diversidades. Daí a importância de facultar aos alunos no Ensino Fundamental e Médio os conteúdos que envolvam as realidades anteriores ao século XVI sob risco dos jovens acreditarem equivocadamente que o mundo nasceu com o Brasil. Imporemos assim, um brasilcentrismo tão ou mais perigoso quanto o europecentrismo que esta proposta quer combater. Como discutir Ciência e produção do conhecimento sem antes conhecerem o contexto de fundação das primeiras Universidades, dos ambientes de produção do conhecimento nos espaços árabes e gregos, discutir cidadania sem conhecer o conceito nos ambientes grego e romano, como saber de onde partiram as primeiras e fundamentais reflexões sobre o Direito desde a época dos romanos e boa parte das instituições que nos cercam até hoje? Uma parte dos dados culturais que constituem nossa tradição cultural brasileira seria apagada da História da mesma forma que antigas escolas europeias fizeram com as culturas ameríndias e africanas em séculos anteriores segundo interesses específicos. Ao aplicar seleções de conteúdo a nossos jovens estaremos praticando uma espécie de revanchismo pobre, ideologizado, tão corruptor das mentes juvenis como o daqueles que nos antecederam. Os eixos devem ser estruturas transversais que contemplem os cenários conjugados e relacionados de forma real e não apenas contextos escolhidos que formulem conclusões comprometidas em função de uma operação histórica direcionada. Lembrando sempre que a História é fundamento da humanidade e diante de uma escolha conduzida apenas segundo parâmetros pedagógicos, ciência recente, corre-se o risco de adotarmos um currículo absolutamente téorico que gere apatia nos estudantes em relação ao seu próprio passado comprometendo, assim, a sua atuação enquanto cidadãos no presente e no futuro.
A História, nesta proposta, perde a sua dimensão de vivido e inviabiliza a sua  reflexão crítica enquanto parte de algo que existiu e nos toca até hoje. Ao impor recortes contextuais arbitrários e focos específicos perde-se a compreensão do todo em detrimento da visão mecanicista da parte. Os processos históricos desaparecem e destacam-se apenas as construções predominando nesta proposta a concepção de História contada, o que em mentes juvenis com pouca vivência pode dar a impressão de se estar tratando de uma sociedade imaginada numa realidade ficcional.  A História perde ainda, nesta proposta, a sua dimensão universal, pois os homens são universais e não continentais ou nacionais. Antes de haver nações já havia processos históricos.
A História é plena de paradigmas: sociais, políticos, culturais e religiosos... Logo, a diversidade é um dos elementos fundamentais do conhecimento histórico, sem ela “congelamos” o passado e o moldamos fora do âmbito da realidade histórica possível. Ensinar aos jovens alunos do ensino médio que a História é dinâmica, cinética e que encontra-se em constante movimento aparece como primeiro passo efetivo para revelarmos a sua importância, pois estudamos o passado à luz do presente, somos frutos de toda uma tradição que nos antecedeu.
Nesse sentido, como podemos excluir se queremos mostrar a importância da diversidade? Destacar a “afro-américa” ou o espaço “afro-americano” requer, primeiramente, defini-lo: ele engloba àqueles que viveram neste espaço? Desde quando? E somente “africanos” e “americanos” fizeram parte desse espaço? Quem os conformava? Sabemos bem que grupos ancestrais autóctones fazem parte deste ambiente, porém outros passaram a participar nesse mesmo espaço e traziam consigo seus conhecimentos políticos, culturais, religiosos e uma constituição social gerada por séculos de experiências. Como podemos excluir os denominados “europeus” desse conjunto? Parte destes apresentou, ao longo da História, uma série de sistemas políticos que tornaram-se referencia para o mundo inteiro – a monarquia; a democracia; a república; outros menos favorecidos, como a tirania, a oligarquia ou a anarquia; e ofereceram-nos a ideia de poderes de caráter militar, como o Império, que ganhou, durante o processo histórico, uma conotação territorial. Como podemos falar de Império no Brasil sem termos uma referência mínima da herança romana e medieval deste conceito? E como falarmos de República ou Democracia sem fazermos menção ao passado clássico e helenístico greco-romano?
Uma História sem passado, sem cronologia, que não respeita a multiplicidade não é História. Por isso sou crítico com respeito a esta proposta, pois ela esquece o simples para os jovens – as referências cronológicas, que estão presentes desde o seu nascimento (hora, dia e ano) e com as quais eles lidam com seus pais, avós e parentes. Aquilo que eles veem diariamente, sobre os conflitos que grassam pelo mundo e que têm referencias cronológicas precisas (vide, por exemplo, o conflito da Síria e o problema que envolve a criação do Califado do Estado Islâmico), ou os diversos filmes e séries que eles assistem em seus lares todos os dias e que os levam a refletir e questionar onde ficava Roma, ou Atenas, ou a fortaleza do Kerac e o Mosteiro de Bobbio, além de muitas outras referências em um tempo passado – o século V a.C., o século II d.C., o século XII e século XIV... Sem a noção cronológica os jovens perdem qualquer referência e afastam-se dos demais jovens que a conhecem. Aqueles que tentam problematizar a História sem a cronologia oferecem visões deturpadas, equivocadas e que, infelizmente, encontram-se presentes em muitos de nossos manuais do ensino médio. As generalizações são decorrentes da falta de especialidade e esta proposta valoriza exatamente esse caminho. Anacronismos que enfraquecem a História e que reduzem os esforços de gerações de historiadores brasileiros que defendiam exatamente a pluralidade de opções e pensamentos que apresentam a Antiguidade, o Medievo, a Modernidade e a Contemporaneidade em espaços que vão do Mediterrâneo em direção à Europa, à África, à Ásia e à América. Nossos jovens, filhos de todas estas tradições, merecem conhece-las minimamente para afrontarem os desafios do conhecimento em um mundo globalizado e totalmente conectado. 
Cabe ainda aqui, a importante reflexão sobre a própria História da historiografia brasileira que não foi considerada nesta proposta. As vantagens de ser historiador sul-americano é a de que conhecemos as duas faces da moeda, a História europeia e a sul-americana, especialmente brasileira.  Dispomos de competências de qualificação estimuladas, inclusive pelas agências de fomento que nos facultam capacidades de crítica, discussão e atualização das interpretações europeicentristas à luz das experiências e conhecimentos mais amplos que envolvem os processos sul-americanos e não só. Capacidades que ecoam em instituições internacionais e permitem parcerias coordenadas a partir do Brasil e a existência de centros de pesquisa e divulgação, formação e atualização docente e discente em avançada fase de consolidação. Uma massa crítica que já dá seus frutos no ambiente científico e acadêmico, mas também no âmbito social. Impôr agora, no momento em que nos encontramos neste processo de consolidação um currículo que limita estas habilidades adquiridas e patrocinadas pelas agências em consonância com o MEC seria um recuo, uma simplificação desnecessária e nefasta á produção do conhecimento junto aos jovens futuros pesquisadores.
Além disso, a inaplicabilidade desta proposta como um todo chama igualmente à atenção manifestando a incapacidade de auto-avaliação por parte das instâncias responsáveis das reais dificuldades que envolvem a tarefa de ensinar no Brasil. A necessária qualificação docente, apetrechamento mínimo das escolas, disponibilidade de meios de acesso dos discentes à escola, a evasão escolar e tantos outros desafios que têm de anteceder o afinamento dos currículos. Parte-se do ponto de chegada de um processo que tem de começar por permitir o acesso mais amplo possível ao conhecimento de qualidade aos jovens sem restrições de conteúdos selecionados.

Sobre o 1º ano do EM Médio em específico:
Priorizar o estudo da África a partir do século XVI é empobrecer a História de um continente e ignorar os trânsitos culturais entre o Magreb e a Península Ibérica, também formadores da nossa identidade brasileira, via convivência entre muçulmanos e cristãos na Península Ibérica, ao longo de sete séculos. Os portugueses que chegaram ao Brasil não eram “isentos” de África, já traziam em si elementos linguísticos, étnicos e culturais africanos, muito anteriores ao início do tráfico de escravos para o Brasil. Basta lembrar que o nascimento de Al-Andaluz se fez, sobretudo, com contingentes de muçulmanos africanos que vieram a estabelecer moradia na Península Ibérica. Ao longo de boa parte da Idade Média, houve luta, mas também convivência pacífica entre os povos do livro. Alunos do Ensino Médio precisam entender que a paz já foi alcançada entre muçulmanos e cristãos que compartilharam o mesmo território. Isso tem grande ressonância no mundo em que vivemos.
Ainda sobre o estudo da África, a ênfase a partir do século XVI, prejudica a compressão de um Magreb formado por cortes brilhantes, em que sobressaiu, por exemplo, um dos maiores historiadores medievais, Ibn Khaldun (1332-1407). Lembremo-nos que esse sábio muçulmano fazia viagens pelo Mediterrâneo, entre terras islâmicas e cristãs e era recebido com honra pelas suas margens! Lembremo-nos ainda que ele é responsável por uma importante metodologia história, bem como por uma percepção da passagem do tempo, que o BNCC parece ter ignorado.
Ainda sobre a convivência pacífica, sobre a guerra e sobre a circulação de indivíduos no mundo medieval, o que tem muito a colaborar na compreensão do presente, quando assistimos às grandes movimentações populacionais de 2015, é preciso falar que a África de antes do século XVI dava espaço ao trabalho de cientistas, tais como Maimônides, que deixando a Península Ibérica, percorreu o Mediterrâneo e encontrou emprego junto ao vizir do Egito. Maimônides é um entre outros que podem ser citados.
Parece que a BNCC ignorou a África muçulmana, que nasceu na Idade Média... Como vai explicar, nos outros anos do Ensino Fundamental, o Império Otomano? As consequências do seu fim na Primeira Grande Guerra? A Revolta dos Malês no Brasil?
As perguntas que os medievalistas fazem aos autores dessa ênfase em uma África vilipendiada, o que se constitui em verdade, mas não na totalidade, é por que ignorar que África também foi um continente cheio de riqueza cultural na Idade Média? Por que não mostrá-la no seu dinamismo cultural e político de antes de XVI? A quem interessa construir um discurso que, ao invés de elevar a riqueza cultural, vitimiza o continente em uma chave de escravidão e partilha colonial?

Sobre o 2º ano do EM Médio em específico:
Quando se aborda as questões da colonização do Brasil, resultado da expansão ultramarina, o estudo da Idade Média pode colaborar no sentido de instrumentalizar os alunos e as alunas do Ensino Médio a perceberem esse fenômeno como resultado, na origem, da mentalidade de cruzada. Nesse sentido, urge compreender o que foram as cruzadas. Onde essa importante aprendizagem está inserida? Uma Historiografia ultrapassada vinculava a expansão às razões unicamente econômicas. Hoje, os medievalistas voltam às fontes a fim de indagarem como as sociedades explicavam seus projetos e encontram a longa permanência da mentalidade de cruzada.
Explicar esse fenômeno é fundamental para que os adolescentes possam analisar criticamente os usos anacrônicos do termo cruzada em nosso contexto.
Quando se fala em movimentação de pessoas a partir do século XVI, empregando o termo “diásporas”, sugere-se que o fenômeno se deu a partir desse século... Onde está a percepção da movimentação dos sábios bizantinos para a Península Itálica, móbil essencial para a compreensão do Renascimento? Prova-se inclusive a permanência da mentalidade de cruzada, a partir da evidência da tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos.
Ao se ignorar a permanência da Idade Média na colonização do Brasil, ignoram-se instituições transplantadas e até a riqueza da obra de Ariano Suassuna e do Teatro Armorial...

Sobre o 3º ano do EM Médio em específico:
Novamente, sobressai a evidência forçada de que o mundo “começou” no século XVI... Depois de 2 anos repisando essa inverdade, os alunos podem se convencer de que não houve pensamento, filosofia, tecnologia, convivência, brilho e dor antes desse “marco”.
Como ao longo de todo o Ensino Médio, segundo a proposta dessa Base, os alunos ficaram sem conhecer o Ocidente Latino, Bizâncio e o Mundo Muçulmano, os medievalistas se perguntam como os jovens poderão entender a ressonância de um fenômeno como a Primavera Árabe?! Como entenderão a ressonância do Prêmio Nobel para o quarteto de Túnis (a Túnis do sábio muçulmano medieval Ibn Khaldun...)? Sem entender que o mundo muçulmano na Idade Média alimentou de filosofia o próprio Ocidente Latino, como as alunas e os alunos verão homens e mulheres dessa religião, e que chegam hoje ao Brasil em grandes contingentes, para além do fundamentalismo que a mídia proclama? Aliás, como entenderão o nascimento do próprio fundamentalismo, cujas correntes contemporâneas estão radicadas em interpretação equivocada de pensamento nascido na Baixa Idade Média?
Como um aluno que encerra seus estudos regulares, entre o Ensino Fundamental e Médio no Brasil, entenderá que só pode ler Aristóteles porque ele foi traduzido e comentado na Idade Média? Ao ignorar esse contexto, tiraremos dos jovens a aprendizagem dos caminhos de transmissão das fontes com as quais o pensamento científico se fez, entre a Época Moderna e Contemporânea.
O mundo não começou no século XVI nem para África, nem para o Brasil, nem para Portugal, nem para qualquer outra parte desse planeta em que homens e mulheres, graças ao conhecimento da História, podem descobrir que uma guerra pode até ter durado mais de 100 anos (a Guerra dos Cem Anos: 1337 – 1453), mas que as sociedades do passado encontraram meios de alcançar a paz. O conhecimento histórico pode dar esperança aos jovens, ao mostrar com evidências diversas que as sociedades mudam, que se refazem, que empregam tempo e energia diversos para encontrarem soluções para seus problemas. A BNCC no que se refere à História não pode amputar o conhecimento histórico.




quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Diálogo sobre o tempo - LANÇAMENTO!

Com muita alegria, convido-os para o lançamento do meu novo livro, escrito com o amigo, o filósofo Jelson Oliveira. Escrevemos sobre o Tempo, sobre a História, sobre a Morte, sobre a Amizade e sobre o Futuro. Não se trata de uma Historiadora e de um Filósofo que abordam temas a partir dos seus lugares de eleição, mas de textos que conversam e extravasam, até para as margens da folha... Nova feição do Diálogo e da Epistolografia? Talvez... Uma conversa entre amigos, pessoas tagarelas... entre a Filosofia e História!

Prefácios de Željko Loparić e Fátima Regina Fernandes.



Dia 4/12, a partir das 18:30, na Livraria da Vila (Shopping Pátio Batel). Para abrir a noite, Mateus Sokolowski e seus amigos, a quem agradeço de coração.


quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Resultado do III Prêmio UFES de LITERATURA

Gratidão à comissão que leu o meu pequeno romance por esse reconhecimento!
http://www.edufes.ufes.br/exhibits/show/novidades/resultado-do-iii-pr--mio-ufes-

ESTADO EMOCIONAL: FELICIDADE TRANSBORDANTE!

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Carta de uma mãe (que por acaso é medievalista) ao Ministro da Educação, sobre a BNCC

Curitiba, 20 de novembro de 2015

Excelentíssimo Senhor Aloizio Mercadante, Ministro da Educação,

Não sei se esta mensagem vai alcançá-lo, mas, se eu não a escrever, vou abrir mão da possibilidade. Sou Professora de História Medieval na UFPR, desde 2006. Meu currículo está disponível na plataforma lattes. Lá, Vossa Excelência vai ver que me formei em Letras, que fiz Mestrado em Literatura, que mudei de área no Doutorado, que já escrevi alguns livros, até uma coleção para crianças (a coisa mais linda que fiz em minha carreira), que tive um livro meu selecionado no PNBE do Professor (em 2013), que tenho um blog e até me aventuro pela Literatura. Não vou perturbá-lo com mais detalhes sobre a minha formação e experiência, pois elas podem ser consultadas na rede. O que me leva a acreditar na possibilidade de ser lida é a BNCC.
Li o documento com atenção e tenho militado pela colaboração de colegas, alunos e pais na consulta pública. Tenho uma filha de 7 anos. A Base impactará a formação de Maria Clara, bem como a de seus amigos e amigas. Impactará o trabalho de meus alunos e a minha área, que foi construída com tanto empenho no nosso país, por gerações que já começaram a partir...
Detive-me na parte dedicada à História. Pensei sobre ela e inseri minha colaboração como cidadã. Senhor Ministro, a Base tem falhas graves... O mundo não nasceu no século XVI, como o senhor bem sabe, mas esse é o tom... Conversei com os colegas de meu laboratório de pesquisa, o NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos) e elaboramos um documento cujos pontos essenciais já foram incluídos na consulta, ou seja, colaborei individualmente e, de maneira coletiva, como participante de um grupo de pesquisa cadastrado no CNPq. Um fragmento de nosso documento:
Imporemos assim, um brasilcentrismo tão ou mais perigoso quanto o europecentrismo que esta proposta quer combater. Como discutir Ciência e produção do conhecimento sem antes conhecerem o contexto de fundação das primeiras Universidades, dos ambientes de produção do conhecimento nos espaços árabes e gregos, discutir cidadania sem conhecer o conceito nos ambientes grego e romano, como saber de onde partiram as primeiras e fundamentais reflexões sobre o Direito desde a época dos romanos e boa parte das instituições que nos cercam até hoje? Uma parte dos dados culturais que constituem nossa tradição cultural brasileira seria apagada da História da mesma forma que antigas escolas europeias fizeram com as culturas ameríndias e africanas em séculos anteriores segundo interesses específicos. Ao aplicar seleções de conteúdo a nossos jovens estaremos praticando uma espécie de revanchismo pobre, ideologizado, tão corruptor das mentes juvenis como o daqueles que nos antecederam.

Senhor Ministro, eu sou membro da diretoria da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e, em consulta aos meus pares, não consegui descobrir um único colega que tenha participado da elaboração desse importante documento. Não sei se esta ausência explica os problemas que encontrei e que outros colegas encontraram, mas estou disposta a ajudar. É isso que me leva a escrever-lhe. Senhor Ministro, eu sou uma servidora pública e, depois que a consulta tiver se encerrado, gostaria de me colocar à disposição do MEC para ajudar a redigir uma Base que acolha as colaborações de tantas pessoas interessadas na formação das crianças e adolescentes brasileiros.
Estamos atravessando uma grande mudança história, as movimentações populacionais que assistimos vão mudar quem somos e, para termos um futuro, é preciso que compreendamos as identidades que nos tocam. Sobre o terceiro ano do Ensino Médio, escrevemos em nosso documento coletivo:
Sobressai a evidência forçada de que o mundo “começou” no século XVI... Depois de 2 anos repisando essa inverdade, os alunos podem se convencer de que não houve pensamento, filosofia, tecnologia, convivência, brilho e dor antes desse “marco”.
Como ao longo de todo o Ensino Médio, segundo a proposta dessa Base, os alunos ficaram sem conhecer o Ocidente Latino, Bizâncio e o Mundo Muçulmano, os medievalistas se perguntam como os jovens poderão entender a ressonância de um fenômeno como a Primavera Árabe?! Como entenderão a ressonância do Prêmio Nobel para o quarteto de Túnis (a Túnis do sábio muçulmano medieval Ibn Khaldun...)? Sem entender que o mundo muçulmano na Idade Média alimentou de filosofia o próprio Ocidente Latino, como as alunas e os alunos verão homens e mulheres dessa religião, e que chegam hoje ao Brasil em grandes contingentes, para além do fundamentalismo que a mídia proclama? Aliás, como entenderão o nascimento do próprio fundamentalismo, cujas correntes contemporâneas estão radicadas em interpretação equivocada de pensamento nascido na Baixa Idade Média?
Como um aluno que encerra seus estudos regulares, entre o Ensino Fundamental e Médio no Brasil, entenderá que só pode ler Aristóteles porque ele foi traduzido e comentado na Idade Média? Ao ignorar esse contexto, tiraremos dos jovens a aprendizagem dos caminhos de transmissão das fontes com as quais o pensamento científico se fez, entre a Época Moderna e Contemporânea.
O mundo não começou no século XVI nem para África, nem para o Brasil, nem para Portugal, nem para qualquer outra parte desse planeta em que homens e mulheres, graças ao conhecimento da História, podem descobrir que uma guerra pode até ter durado mais de 100 anos (a Guerra dos Cem Anos: 1337 – 1453), mas que as sociedades do passado encontraram meios de alcançar a paz. O conhecimento histórico pode dar esperança aos jovens, ao mostrar com evidências diversas que as sociedades mudam, que se refazem, que empregam tempo e energia diversos para encontrarem soluções para seus problemas.

Senhor Ministro, a História me deu e dá ainda... esperança. Mais uma vez, não sei se essa mensagem chegará à Vossa Excelência, mas resolvi tentar e dizer claramente que estou disposta a ajudar.
Despeço-me com sinceros votos de que sua gestão seja coroada pela elaboração da Base mais equilibrada para a formação de nossas crianças e jovens: nossos filhos, filhas, seus amigos, futuros médicos, professores e ministros.
Marcella Lopes Guimarães.


PS.: Essas foram as leituras de ontem à noite para Maria Clara. Entre as Histórias à brasileira, recontadas por Ana Maria Machado, a "Moura Torta". Depois, Obax, a menina que acreditava em chuva de flor. Que nossas crianças tenham direito à fruição de todas as histórias...

Resposta do Gabinete (de ontem, 23/11/2015):
Prezado(a) Senhor(a),
Informamos que sua mensagem endereçada ao Ministro de Estado da Educação foi encaminhada à Secretaria de Educação Básica (SEB), por tratar-se de matéria de competência daquela Secretaria.
Caso queira obter mais informações, sugerimos que entre em contato diretamente com a SEB, por meio do e-mail: gabinete-seb@mec.gov.br .

Atenciosamente,

Coordenação de Gestão e Apoio Administrativo
Gabinete do Ministro
Ministério da Educação
Bloco L – Ed. Sede, 8° Andar – sala 811
Cep: 70.047-900 - Brasília/DF
É(61) 2022.7866
* apoioadministrativogm@mec.gov.br

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Sobre a liberdade ou o desapego, dependendo do ponto de vista...

Cavalgada

O guia afirmou que o passeio até a cachoeira duraria uma hora. Era longe assim? Não, era pertinho, mas só dava para cavalgar até uma parte, o resto se cumpria a pé mesmo e ainda tinha o tempo de descalçar as botas e avançar para a água. Decidiu-se, agarrou as rédeas e seguiu o tio e os primos mais velhos. No alto da égua branca, acarinhada desde a véspera, tinha resolvido não olhar para trás, mas no último pedaço de caminho em que era possível ver os pais com o coração na mão, ofereceu o consolo de um olhar. Ao voltar-se, sentiu que seus cabelos encobriam todo o rosto e até enxugaram uma lágrima. Nunca pensou que se chorasse de coragem, descobriu na cavalgada.
Tentou lembrar se a mãe passara o protetor solar, o repelente... Esqueceu o chapéu com flor! Ai, agora, era tarde. Nem dava para voltar. Eram os primeiros riscos que tinha de assumir. Descavalgou. O trecho a pé era tão longo quanto o percorrido a cavalo. A ponte é essa tabuinha sobre o riacho? Dá a mão pro tio. Pela mão do tio, chegou aquele absurdo de água jorrante! Se soubesse, tinha levado maiô. Fica pra a próxima, avisaria à mamãe. Não, colocaria ela mesma o maiô na mala. Na próxima. Molhou a mão; mergulhou-a. Achou a mão debaixo d’água maior que a da superfície! Tirou. Era a mesma mão com pressa de nadar.
Voltar é uma decisão mais comprida que partir, descobriu. Mais encalorada, sedenta e cansativa. Voltar era confrontar os mesmos riscos? Os primos apostaram corrida. Tentou convidar a sua égua mansa a participar da competição, mas o tio fez que não. Olhou para os lados. Essa plantação de milho estava aqui? Não sabia se os primos, já distantes, tinham reparado. Parecia uma plantação ainda pequena, toda verdinha, sem frutos, mas valente. O guia afirmou que esses milhos não alimentariam as pessoas e sim os animais. Achou curiosa essa sintonia de gostos. O primeiro que viu foi o pai. Mas logo descobriu a mãe na varanda. Empinou-se para o encontro. Quando chegou, sofreu a vergonha das palmas. Abraçou-se a égua com quem correu o mundo e voltou resoluta para os beijos e abraços de quem lhe quis dar.

Para Maria Clara Guimarães Prado que, em 15/11/2015,

fez sua primeira trilha a cavalo, sem os pais.


segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Fátima Regina Fernandes responde: "Afinal o que é esta tal de Prosopografia?"

     Vejam só, hoje de manhã expliquei no café da manhã para um dos meus filhos a metodologia prosopográfica e ele entendeu!!!!!!!!! Então, em primeiro lugar a implacável constatação de que temos uma casa de nerds e em segundo lugar, que se ele que estuda Física entendeu e até achou interessante do ponto de vista metodológico talvez fosse útil tentar rascunhar a sintética explicação matutina e divulgar no blog da Mar. Mas será justo destacar que também adoramos falar de abobrinhas em muitos momentos, não se iludam.
     Mas, afinal o que é esta tal de Prosopografia ?
É uma metodologia de base de pesquisa em Ciências Humanas, incluindo-se aí, a História, já bem antiga, mas que hoje a historiografia aplica de forma mais rigorosa. Vamos ver se conseguimos sintetizar as operações básicas e as reflexões prévias à sua aplicação.
     Em primeiro lugar, seleciona-se um grupo de estudo que disponha de elementos em comum, sejam eles profissionais, partidários, a vinculação a uma ordem, facção ou mesmo estarem todos numa mesma função. Nós, particularmente analisamos um conjunto de nobres de diversos estratos nobiliárquicos diferentes que compõem a sociedade política de um determinado rei. Este grupo será objeto de análise: em primeiro lugar cada um dos componentes deste universo selecionado cuja trajetória individual será construída a partir de todas as menções encontradas em fontes. No nosso caso, que trabalhamos com recorte medieval, devemos considerar que os vínculos e relações de poder têm uma dimensão pessoal, era assim que funcionava o jogo sócio-político medieval. Analisa-se, de partida, para cada um, sua origem, condição de nascimento, legítimo ou bastardo, sua posição na linhagem, primogênito ou secundogênito. Em seguida, as relações artificiais que completam a rede de vinculações de sangue, quais sejam, as relações matrimoniais que ele estabelece, as alianças inter ou intra-linhagísticas que busca construir, da mesma forma que as relações vassálicas que busca para si.
     Mas esta construção de uma trajetória ainda que individualizada não pode ser exclusivamente individual, devemos contrapô-la todo o tempo com seu contexto relacional. Sim, é essencial que haja clareza na problemática específica que provoca a pesquisa, assim, em nosso caso, o eixo contextual é a instituição monárquica visto que trabalhamos com a hipótese de que a sociedade política do rei “x” influencia e em certos casos determina os rumos e focos de sua governação. Lembrem-se, esta reflexão só é plenamente válida no contexto de sistema de valores e relações de poder medievais! Para cada contexto tem de haver uma reflexão específica e um estudo prévio das regras de funcionamento da sociedade em questão. Assim, em nossa pesquisa, a trajetória do indivíduo deve ser analisada à luz do contexto de legislação, jurídico e administrativo do rei com o qual se pretende relacionar.
     Além disso, existe um nível de análise transversal a toda pesquisa histórica, a crítica externa e interna das fontes que inclui o conhecimento dos contextos de produção dos documentos sejam eles, cartas, tratados, crônicas, atas, literatura genealógica, inquirições, qualquer uma delas merece reflexão. Por que rememorar tal cenário? Por que registrar esta ou aquela informação, doação, casamento, ordenar em listas genealógicas os nomes dos indivíduos que compõem uma família, confirmar este ou aquele direito, legitimar esta ou aquela dinastia através do ato de contar a sua história? Enfim, são muitas as perguntas para aquele que necessita contextualizar suas fontes. Precisamos filtrá-las em suas intenções declaradas e principalmente nas sub-reptícias enquanto avaliamos as condições de validade do relacionamento de seus dados à trajetória do indivíduo em construção. Assim, quando se realizar a operação de relacionamento dos materiais documentais o pesquisador estará capacitado a reconhecer a logicidade do ordenamento das fontes a considerar em sua pesquisa evitando a produção de resultados equivocados.
     Finalmente chega-se ao momento de relacionar as trajetórias individuais entre si de onde se poderão extrair perfis de atuação, produto por excelência deste tipo de metodologia. Analisar o que ele tem de comum e o que tem de extraordinário, de competência e excepcionalidade em seu contexto. Este tipo de conclusões permitem que escapemos de generalizações extraídas de obras construídas por não-especialistas que incorrem no equívoco de reproduzir modelos construídos em fontes de forte intenção ideológica medieval propagadoras de modelos ideais de nobre, cavaleiro, rei, mulher e tantas outras categorias que seria fastidioso citar. Afinal, fazer ciência é justamente fugir da generalidade e entrar na Demanda do Graal da especificidade!
     Bem, tomara que meu texto tenha escapado das artimanhas do hermetismo acadêmico que vaga por todo mundo tentando encobrir as incompetências com um manto de sabedoria inalcançável! Pelo menos, de minha parte, foi um prazer dividir com vocês estas reflexões que podem inspirar outros a participarem desta aventura irresistível do conhecimento.
por
Fátima Regina Fernandes
Professora de História Medieval na UFPR (quase titular... Dezembro chega logo!!!!!!), minha orientadora no Doutorado.

  

Foto tirada no casamento de nossos queridos alunos Naiara e Thiago Stadler!

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

É porque sou muitas...

Divulgo a publicação de meu conto "Pé de Múmia" na Revista Raimundo:

Obrigada aos editores que selecionaram o texto e aos leitores que dedicarão tempo, essa coisa mais amorosa do mundo..., ao que escrevi!



Foto tirada por Andréia Bentes, em Poitiers (FR).

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Sobre RESENHA, o texto mais generoso do mundo!

A resenha é um texto que realiza a mediação crítica de um objeto. Esse objeto pode ser um livro, um filme, uma peça de teatro, uma partida de futebol, um congresso, uma exposição etc. Ela não é exaustiva, é uma síntese; ninguém deve se sentir instado a reescrever tudo o que leu ou viu com outras palavras (vai perder para o original, experiência única!), mas fazer uma seleção de aspectos que considerou relevantes. A resenha é um texto em que o autor se revela na mediação e na seleção. Por que afirmo que é o texto mais generoso do mundo? Porque pensa no outro, no leitor, o tempo todo, ou deveria...
Eu gosto de escrever resenhas, já escrevi muitas, mesmo que elas não tenham muito valor para as pontuações da Pós-Graduação. Duas resenhas minhas recentes podem ser encontradas no meu perfil do Academia.edu: uma sobre a obra Atlantique comme pont (2012) e outra sobre a obra intitulada Les Troubadours (2013). Outro dia, publiquei aqui no blog uma resenha da obra A Tela da Dama, ensaios de Literatura, escrita por Teresa Cerdeira. Essa experiência me trouxe aqui: a um texto de reflexão sobre o tema.
Por que fazemos resenhas? Nós as escrevemos porque achamos que aquele objeto, vou me deter nos livros doravante, pode interessar a outras pessoas. Nós não chegamos à obra também sem algumas razões e, mesmo que a resenha nos tenha sido encomendada por um editor para um projeto específico, há razões para o volume ter sido encaminhado a nós. A mais forte pode ser nosso repertório. Então, o livro nos encontra e julgamos que ele pode interessar a mais gente. As nossas razões e as que antevemos nos outros convergem para revelar afinal se, em nossa avaliação, aquela obra cumpre ou não o que promete.
Uma resenha deve apresentar o livro. Se se trata de uma tradução e o tradutor é alguém que se dedica à obra daquele autor de forma continuada, como a minha amiga Maria Célia Martirani à obra de Cláudio Magris, vale a pena dispensar duas palavras sobre o trabalho realizado por esse grande mediador, que é o tradutor! No primeiro parágrafo de minha resenha de A Tela da Dama, eu me preocupo em identificar Teresa Cerdeira como ensaísta: falo de sua experiência e redefino o livro, como uma História da Leitura de categorias portuguesas. Aqui, já começo a minha mediação crítica.
Refiro as duas partes da obra e sintetizo seus capítulos. O interessado em Literatura Portuguesa que recorre à resenha que escrevi deve ser esclarecido a respeito do que vai encontrar na obra de Teresa. Se esse leitor pesquisa o século XVIII em Portugal, provavelmente não vai comprar A Tela da Dama por minha causa. Mas um estudioso da Literatura Portuguesa produzida no século XX precisa encontrar no meu texto as razões que o levarão à Teresa. O resenhista poupa tempo e dinheiro ao pesquisador/leitor! Porém, tão importante quanto apresentar o “conteúdo” da obra, foi para mim abordar a poética da autora. Com isso, esclareço ao leitor interessado que Teresa não é uma compiladora, mas uma ensaísta exigente e muito confiável. Afinal, se ela conhece todas as ideias gerais que podem ser pensadas sobre seus autores, ao seu convite: vamos um pouco mais longe?, só cabe o sim.
O gosto por essa poética de Teresa me levou a citá-la muito na minha resenha. Talvez demais... A explicação é que eu quis que o meu leitor experimentasse o texto, mas devo apontar que a citação do objeto deve ser feita com parcimônia. Eu costumo citar os textos quando gosto particularmente deles e quando resenho obras que ainda não foram publicadas no Brasil. Eu penso na angústia de quem acha que precisa de um livro que está distante: “essa angústia que há em sentir a criatura a quem se ama em um lugar de festa onde a gente não está, e aonde não pode ir vê-la” (Em busca do tempo perdido). Ah, esse Proust me adivinha... Para os angustiados, um refresco de esperança, uma frase que pode mudar tudo, danar o cartão de crédito ou salvar as nossas finanças, com um alívio: não era bem aquilo...
Critico o tamanho de minhas resenhas sempre que as termino. Volto e não corto nada... Vou explicar a verborragia com uma razão simples e uma constatação: em primeiro lugar, eu gosto de escrever, isso me leva a permanecer com as palavras e me gastar com elas, não agastar..., e demorar em amorosa visitação. A constatação é que as últimas resenhas que escrevi referem-se a livros que não foram publicados no Brasil. Isso me levou ao esforço de prover ao máximo o meu leitor com informações. A minha enorme resenha de Les Troubadours ainda tem outra razão: eu amei o livro! Esse negócio de amar leva um tempo delicado só para imaginar as declarações.
O leitor da minha resenha de A Tela da Dama descobre rápido que eu conheço a obra de Teresa. Como publiquei a resenha em meu blog, poderia até ter escrito que ela foi minha professora quando eu tinha 17 anos e que foi minha primeira orientadora. No blog, isso é possível! Mas se eu quisesse propor a minha resenha a uma revista qualificada, essas referências pessoais teriam de ficar de fora, pois comprometeriam a avaliação cega, ao identificar-me. Agora, veja bem, conhecer a obra do autor não é identificar-se, é mobilizar o próprio repertório e isso é eficaz em uma resenha. É eficaz e elegante também trazer outras referências ao texto, desde que não seja para se pavonear, afinal outros textos propõem possibilidades de relações inéditas do próprio objeto. Detalhe pseudozoológico: pavões não resenham bem, pois querem que o leitor só enxerguem as suas próprias penas.
Eu sou editora de uma revista e, muitas vezes, leio “resenhas” que na verdade são bons resumos a que o autor juntou um parágrafo final de avaliação crítica. Para mim, a diferença entre esses dois gêneros textuais primos é que a resenha é mais seletiva e crítica que o resumo, que só quer saber de descrever/sintetizar o conteúdo dos objetos. A resenha precisa ter mediação crítica do início ao fim e isso é muito mais abrangente que expressar gostei ou não gostei. Até porque, no pacto de generosidade para com o leitor que o autor da resenha deve firmar, precisa estar escrito que aquilo que não me serve pode servir a alguém. Mas é claro que o gostei ou não gostei também tem seu valor...
A resenha pode enaltecer ou derrubar uma obra, que por sua vez pode ser apreciada de formas tão diferentes quanto o número de seus leitores. A resenha é um texto fundamentado, mas pessoal, no sentido de que os juízos que ela tece partem de formações, repertórios e trajetórias diversas. Essa subjetividade bem informada impõe ao texto (e a seu autor!) uma grande responsabilidade e exige, para a sua realização, uma leitura acurada do objeto, onde análise – decomposição do objeto em partes – e síntese – recomposição da essência – são conjugadas.
Eu falei acima que a resenha vale pouco para as pontuações dos Programas de Pós... Está claro que não concordo com isso e continuo a fazê-las porque elas são importantes. Estimulo as pessoas a escrevê-las. Eu sou uma leitora de resenhas, elas poupam meu tempo na seleção do que me interessa: ajudam-me a comprar, a devassar bibliotecas e a indicar livros. Tenho um grande respeito por quem se sentou lá na sua solidão para escrever sobre um livro que pode mudar tudo o que eu achava que sabia, ou simplesmente confirmar que estou no caminho.

Se eu já li resenhas que me enganaram? Já quis mandar a conta do cartão de crédito! Mas desanimei. Afinal toda conversa guarda a possibilidade daquele equívoco do telefone sem fio da nossa infância.

sábado, 17 de outubro de 2015

Há 100 anos Orpheu canta para Cleonice - relato sobre um grande congresso

Esta semana participei de um congresso em homenagem ao centenário da Professora Cleonice Berardinelli e da Revista Orpheu. Que felicidade reunir efemérides assim! O congresso começou no Palácio São Clemente, passou pela ABL (afinal, D. Cleo é imortal), pela Fundação Casa de Rui Barbosa e terminou na casa que foi sua por tantos anos, onde foi minha professora, a Faculdade de Letras da UFRJ, na Ilha do Fundão.
Para mim, foi a maravilhosa ocasião de matar as saudades dos meus professores (e na semana do nosso dia!): a própria D. Cléo, Teresa Cerdeira, Marta de Senna, Helder Macedo, Jorge Fernandes da Silveira, Luci Ruas...; rever amigos, Mônica Fiqueiredo, Jorge Valentim, Sofia de Sousa Silva...; conhecer a ABL (pasmem, nunca tinha entrado lá!), passear pelos jardins de Rui Barbosa depois do almoço, matar as saudades dos corredores da minha faculdade – esse lugar em que entrei menina acanhada e saí a jovem corajosa, com as armas de Quixote... rsrs. Eu tenho tanta gratidão que nem se eu falasse a língua dos anjos!
Voltar a Casa, esse lugar de proteção... Não que eu me sentisse sempre segura, depois de certa hora no Fundão, cá entre nós. Ontem, quando vi policiamento em frente à minha faculdade, quase não acreditei. Quando saí do metrô e entrei em ônibus que me deixou na porta da Faculdade, quase chorei!
Mas entre os abraços apertados, o afeto dispensado pelo poeta Melo de Castro, depois de minha fala na ABL, aprender mais! Voltei com a minha caderneta azul repleta de observações, como: “ler urgente” tais livros; “procurar urgente” certo poeta, “nunca tinha pensado”, “ler outra vez esse texto, pois não percebi isso”... Aprender. Como eu amo aprender coisas novas! Há uma coisa irresistível, perigosa, deliciosa em querer ultrapassar o não sabido, vivenciar novas fruições. Aprender é muito sensual.
Vivemos um desinteresse geral pelos colóquios e suas publicações. Vivemos a elevação do modelo monástico sem ascese... Cada um consigo mesmo no escritório, sem papo com qualquer pessoa, a escolher as revistas mais qualificadas para publicar textos rápidos, mais provisórios que a própria dinâmica do conhecimento que se transforma e refaz... Mas, como saí jovem mulher quixotesca e rebelde daquele Fundão, não vejo a hora de agarrar a publicação resultante de um encontro de gigantes para celebrar a vida da nossa Cleo imortal. Reler aquele texto do Helder sobre o poema de Camões que eu já tinha lido tantas vezes, que só um grande professor para mostrar que eu não tinha lido direito. Leonor, toda a vez que você for à fonte, eu vou contigo certa de que a gente não corre risco algum, apesar de “não segura(s)”[1]!...  


Minha querida Marta de Senna


Mesa com Jorge da Silveira, Sofia Silva e Ida Alves, apresentada por Teresa


Marta e eu: muito amor!


Que mesa!!!!!!!!!!


A legenda é desnecessária... Quase 20 anos de admiração!


Que mesa!!!!!





[1] Poema do Camões:
Descalça vai pera a fonte
Lianor pela verdura,
Vai fermosa e não segura.

Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata.
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamalote,
Traz a vasquinha de cote
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa, e não segura.

Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entraçado,
Fita de cor encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa, e não segura.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Para os que querem dominar a arte de ler entranhas, uma resenha de "A Tela da Dama" de Teresa Cerdeira (Lisboa: Editorial Presença, 2014).

A Tela da Dama, Ensaios de Literatura é uma obra em que o exercício da crítica; a experiência da pesquisa, não como “falar do não sabido” (pág. 217), como a autora provoca; da docência e a arte de escrever se conjugam para revelar escolhas que são fundadas na leitura. Muita coisa?! Então talvez A Tela da Dama de Teresa Cerdeira, Professora de Literatura Portuguesa da UFRJ, seja mesmo uma História da Leitura de “categorias portuguesas”, em paráfrase recriadora do projeto de Giorgio Agamben que li outro dia (refiro-me às suas Categorias Italianas, estudos de poética e literatura). Mas, então, como História da leitura, esse conjunto de ensaios é uma experiência ainda maior! A “Introdução à parte I: Contrabandos da cultura: a Babel feliz” é prova; um pequeno (só em tamanho) manifesto pela leitura.
O livro é dividido em duas partes. A segunda é dedicada ao “labor poético”, mas na primeira não reina a prosa, como esperado... Logo, aprenderemos que, com Teresa, trata-se de desconfiar sempre do esperado, explico assim a docência do primeiro parágrafo, que tem forte ressonância em sua poética, como ainda farei menção. A importação do substantivo “contrabandos” como essência da primeira parte esclarece que Teresa está interessada em revelar os trânsitos e transferências, mas que prefere o vocabulário do delito para expressar o que não cabe nas regras, nas licitudes... Quem são os implicados nesse crime de que somos todos leitores, ou melhor, cúmplices? São os autores que, ao longo dos 25 anos de pesquisa referidos no agradecimento ao CNPq, estão nas prateleiras de acesso mais fácil em seu escritório, aqueles que têm mais cores de marca-texto nas páginas, aqueles cujos nomes figuram na capa dos códices de mais continuadas visitações. São predominantemente autores portugueses do século XX e XXI: David Mourão Ferreira, Fernando Pessoa, Helder Macedo, Herberto Helder, Jorge de Sena, José Saramago, Miguel Torga e Sophia de Mello Breyner Andresen. A exceção medieval de Estêvão Coelho é responsável pela não exclusividade da Literatura Contemporânea. Para o poeta e romancista Helder Macedo, os maiores ensaios das duas partes da obra e os maiores riscos.
Quem conhece Teresa Cerdeira sabe bem que Helder é seu amigo, no sentido mais duardino do conceito (refiro-me, é claro, ao disposto por D. Duarte no Leal Conselheiro). Ao vincular o conceito à precisão que lhe dá o rei medieval, rechaço a camaradagem do tapinha nas costas que exime o outro da crítica, bem como a possibilidade de invasão no universo da crítica literária de informações que só a proximidade dá acesso. Teresa antevê o risco e define “Vamos, portanto, partir do universo da leitura de Helder Macedo para encontrar ali as perguntas a serem feias sobre a sua bagagem de viajante” (pág. 23). Com isso, convida seu próprio leitor a um caminho mais cheio de bifurcações, em que, entretanto, a vida orgânica e completa, vez por outra se apresenta. Teresa se detém nos romances Partes de África, Pedro e Paula, Vícios e Virtudes, Sem nome e Natália e vai esclarecendo o mosaico, em que participa também a obra ensaística de Helder Macedo. No primeiro texto, o conceito de Ekphrasis se apresenta e colabora para fundamentar a ideia de contrabando.
Na Tela de Teresa figura José Saramago obviamente. Afinal, até onde sei, a sua tese de Doutorado foi a primeira no Brasil a se dedicar à obra do Prêmio Nobel. No capítulo, como em outros, Teresa revê as suas conclusões, revisita seu diálogo fecundo com a História, ilumina os intertextos e refuta influências. Para uma orientanda de Georges Duby como ela o foi, a evocação de fragmento do Cerco de Lisboa sobre as diferenças que mais importam (pág. 83) parece quase homenagem ao medievalista francês, ainda que não declarada... (lembremo-nos que, em Ano 1000 ano 2000, na pista de nossos medos, o mestre afirmou que são as diferenças que mais nos ensinam), mas nesse caso é também uma medievalista que lê Teresa...
Jorge de Sena merece dois artigos na primeira parte, um em que está acompanhado de Miguel Torga e outro em que Teresa volta a evocar a Ekphrasis. No primeiro caso, a autora está interessada em como os dois enfrentam o discurso bíblico, um discurso fundador (pág. 101). Já na sua leitura de “Teorema” de Herberto Helder, Teresa propõe não a celebração da vingança, mas do amor (pág. 130), “o júbilo erótico de uma experiência a três” (pág. 131), em que contracenam o rei Pedro I de Portugal, a dama Inês de Castro e um de seus algozes, Pero Coelho.
Nos capítulos dedicados a Saramago e a Herberto Helder fica mais evidente um traço dos mais instigantes da poética de Teresa. Chamo o seu fazer ensaístico de poética: repleto de conexões surpreendentes, de referências marcantes e do incentivo (ou provocação?) a abandonar o senso comum. É bem verdade que, no último caso, não se trata bem de senso comum. Teresa publica ensaios sobre Literatura Portuguesa contemporânea em editora portuguesa e fala, sobretudo, aos estudantes e leitores brasileiros cultos. Isso chega para forjar um senso comum? Teresa não quer saber, provoca-nos: “De forma redutora a veríamos se a ela impuséssemos tão somente (...). A questão é certamente maior do que essa” (pág. 84), no caso da Jangada de Pedra de José Saramago ou “o exigente conto de Herberto Helder reclama mais” (pág. 126), “esse conto vai, na verdade, na contramão das expectativas de leitura” e “Não se trata, no entanto, de mergulhar no maravilhoso ou no fantástico que seriam as estratégias facilitadoras e reguladoras da dissensão. O conto, ao contrário, mantém até certo ponto as suas balizas claramente realistas, e é de dentro delas que se constrói a perversão do realismo, quer por efeitos de inadequação temporal, ou espacial, ou actancial (pág. 128), essas três últimas observações concernentes ao conto “Teorema” de Herberto Helder. Teresa nos afirma, com isso, que o caminho fácil não é mesmo o mais sedutor.
A discussão da obra de Helder Macedo (de Viagem de Inverno) também abre a segunda parte da Tela de Teresa, em texto que considero essencial para a poética da autora, ou seja, em que o como é o modo mais singular de o saber se revelar. Eu já escrevi sobre Viagem de Inverno e lendo Teresa me pergunto se eu li mesmo os poemas que compõem essa obra de Helder, tal a maneira como a ensaísta me instiga a pensar por outros vieses, entre a música e a literatura de viagens (pág. 139). Novamente, Teresa desafia: “A digressão, benévolo leitor, é consequente” (pág. 157). A piscada de olho não a faz soltar a nossa mão, mas com a outra ela borda, verbo caro à sua obra (Refiro-me ao seu muito conhecido O avesso do bordado. Lisboa: Caminho, 2000) caminhos novos. No caso da obra de Helder, a demarcação das “estações de uma caminhada” (pág. 174).
Teresa volta a Jorge de Sena, traz David Mourão Ferreira e não se despede de Helder Macedo quando propõe em um capítulo a superação da melancolia do ser português pela via erótica, que a obra dos autores lhe descortina. Teresa os aproxima na vida empírica também, recusando-se a virar as costas àquele todo orgânico de que falei acima, que compõe o sujeito que escreve e paga contas. A obra Navegações de Sophia de Mello Breyner Andresen é revisitada em um texto interessantíssimo sobre História e futuro. De Pessoa, que Teresa alcança via Alberto Caeiro, ela salta séculos para terminar a Tela na Idade Média, com um texto que revela seu trabalho crítico, sua poética e a sua amorosa história da leitura: “no exercício da crítica há que devorar as entranhas do texto, há que ter também olhos agudos para ler o que está além da sua aparente simplicidade, para além da evidência da superfície, para além da externalidade previsível, de modo a deixar-se surpreender não pela profundidade (...) mas pelo que a trama dessa superfície projeta como pluralidade de significações” (pág. 216). Nesse fim que é experiência mágica de ler entranhas, Teresa completa a cena da cantiga do trovador Estêvão Coelho, em que a dama tece e é “autora do canto formoso” que o eu poético escuta maravilhado. Esse texto de Teresa foi também publicado na Revista Diálogos Mediterrânicos 4: (http://www.dialogosmediterranicos.com.br/index.php/RevistaDM/article/view/70/88). Os cancioneiros galego-portugueses não identificaram autorias femininas, mas Teresa “prediz” o passado (!), ao apontar que na cantiga a referência ao canto da mulher prova a sua possibilidade.

Na Tela da Dama leio Categorias portuguesas que não se importam de conviver, entretanto, com outras referências que são essenciais para Teresa Cerdeira. Ela fala de bagagem de viajantes e podemos achar na sua de mão, ou seja, naquela valise que salvamos da possibilidade de extravio, também os mestres Roland Barthes, Georges Bataille e Marcel Proust. No “manifesto” que abre esses Ensaios de Literatura (Na “introdução à Parte I”), Teresa afirma que a “leitura que obseda é a grande condutora do desejo de escrita” (pág. 18), da sua escrita, está claro, mas também da minha, aqui e agora.
 PS.: é possível ler uma outra resenha desta mesma obra em: http://www.nosrevista.com.br/2014/03/18/teresa-cerdeira-aborda-a-critica-literaria-em-%C2%ABa-tela-da-dama%C2%BB/