segunda-feira, 25 de julho de 2016

O “Guarda-Redes”

Prólogo:
Não sei se António Rei se sentiu particularmente inspirado pela vitória da seleção nacional contra a França na final da EUROCOPA – 2016, o certo é que esta semana o blog LITERISTÓRIAS tem a alegria de publicar mais uma crônica literária sua, desta vez sobre futebol, sobre férias em Odeceixe e sobre um outro 7 X 1...

O Guarda-redes

Andava eu deambulando pelos Algarves, em pleno verão de 79, e já algo saturado da agitação estival das cidades do extremo sul, em especial Portimão e Lagos (os meus poisos prediletos, confesso) resolvi começar a subir a chamada “Costa Vicentina”, na companhia de um outro compincha, o Miguel.
Acabámos por parar em Odeceixe, onde o Miguel já estivera noutro momento, mas que para mim foi uma estreia.
Fomos acampar, como muitos outros, para a praia de Odeceixe, que ficando a norte da foz da ribeira do mesmo nome, ainda fica no Alentejo, enquanto a povoação está na outra margem, no extremo noroeste do Algarve. A maré vasa permitia ir-se ao povoado, sem se ter que fazer uma volta de alguns quilómetros por caminhos poeirentos e por estrada. A fauna campista era da mais “desvairada” gente, portugueses e estrangeiros, mais assim e mais assado, que coexistiam, compartilhavam um pouco de tudo.
Há noite, a fogueira da praia era um dos pontos de encontro e reunião de toda esta gente, que, como alternativa tinham uma barraca de madeira coberta de caniços, pomposamente “o restaurante” da praia.
Ali havia um rádio, sempre ligado, numa estação, indefinida, não se percebendo muito bem se eram notícias, música, publicidade ou relatos desportivos. Mas ninguém a tentava afinar, nem ninguém se preocupava com isso. O suprassumo era uma televisão, que era ligada à noite, e onde a imagem, quando estava fixa e não corria vertiginosamente na vertical, quase não tinha contraste, era tudo cinzento, mais ou menos, pois ainda a televisão era a preto e branco. Mas sempre era uma marca de cosmopolitismo.
Lá se podia comer alguma coisa, mas onde a ementa era sempre apresentada num pedaço de toalha de papel, que seria reciclado de alguma toalha do dia anterior.
E onde o mais barato, era pedir uma sopa, pão e azeitonas ou queijo. E mesmo pedir um queijinho de ovelha não era coisa para todos os dias. Era carote. O orçamento das idas veraneias ao sul tinha que ser esticado, muito esticado !
A comunidade de campistas da praia era um motivo de interesse sociológico, atração erótica e inveja, muitas vezes disfarçada de desdém, por parte dos odeceixenses (se é que se chamam assim). A malta da praia “é que a levava direita”, pensavam eles, mas não diziam.
Os rapazes mais ou menos guedelhudos e as raparigas mais ou menos descobertas, todos com mais ou menos missangas, e transportando um mais intenso ou longínquo aroma a “patchouli”, causavam ou ressuscitavam todas aquelas interrogações aos moradores, quando aqueles iam ao povoado fazer compras de artigos de primeira necessidade, nas pequenas vendas, meio mercearias, meio tascas.
Na mercearia, onde dominava o elemento feminino autóctone, os cenhos franziam-se de desdém ante as “raparigas da praia”, e as odeceixenses mais novas, mas não só, amiudavam de soslaio os “rapazes da praia”.
Na tasca, que era geralmente contígua apenas separada da mercearia, por uma porta, sempre aberta, acontecia o mesmo, mas no inverso.
Os que “não valiam nada” segundo eles, eram os “rapazes”, mas as “raparigas”, calma … eram motivo de olhares, de graçolas e de simpatias melosas por parte dos homens da terra. Aquela tensão social latente, que era causada pelos veraneantes, levou a que alguns de Odeceixe tivessem proposto aos campistas da praia um jogo de futebol, entre uma equipa de naturais contra outra “arrebanhada” entre os “rapazes da praia”.
Os elementos campistas que receberam o desafio, disseram logo que sim, sem mais aquelas.
Assim, sublimou-se, ritualizou-se, pelo evento desportivo, o confronto de valores e vivências, de ambos os grupos.
E o jogo seria logo no dia seguinte, fim-de-semana, porque os de Odeceixe podiam contar com a “arma secreta” para aquele recontro. Um rapaz da terra, com jeito para os pontapés na bola, e que “até jogava num clube da III divisão”. Só este facto já lhes garantia que aquele eleito, a quem os deuses tinham posto asas nos pés, qual Hermes ou Mercúrio, iria dar a vitória, aos da terra, e repor a “ordem do mundo”, seriamente ameaçada por aqueles “outros”, tão diferentes, tão interessantes, tão apelativos, tão filhos do demo …! que iriam ser arrasados naquele jogo.
Nessa noite, os recetores do desafio e organizadores da equipa da praia andavam fazendo convites para reunir o número de sete jogadores para o tal embate, quase civilizacional. Estavam tão ocupados e preocupados que nessa noite nem apareceram na fogueira da praia.
No dia seguinte, à hora do almoço no “restaurante da praia”, os mesmos organizadores, já à beira do desespero, acercaram-se de mim e perguntaram-me se eu quereria jogar como guarda-redes, pois aquele que primeiro dissera que sim teve um contratempo que lhe impediria estar presente no “derby”.
Entre duas colheradas de sopa, e eventualmente ainda de colher no ar, apanhado de surpresa pela proposta, num primeiro momento, declinei o convite. Mas o ar desesperado dos ditos tocou as raias do pânico, e um deles pediu-me, de joelhos que fosse, porque já não podiam pedir a mais ninguém. Ou seja, eu era o eleito por exclusão de partes. Acabei por lhes dizer que sim, e lá me deixaram acabar a sopa, o pão e as azeitonas.
Pouco depois juntou-se um grupo, entre os jogadores, as “estrelas da companhia”, e a companhia propriamente dita que ia apoiar e em dois ou três carros, toda a malta mais ou menos amontoada, e em que o veículo mais espaçoso era uma van VW pão-de-forma.
O grupo campista ia todo mais ou menos entusiasmado com o jogo. No fundo sentiam, também eles, que aquela diferença de formas de vida deveria conduzir a um desfecho que levasse a algum género de confronto físico. E que o jogo de futebol é a forma ritualizada da batalha. Eu, confesso, estava um pouco alheado daquela euforia. Mas a achar piada pela coisa em si.
O grupo, que na praia parecia grande, quando se chegou ao recinto, foi aniquilado pela quantidade de naturais que estavam lá para ser testemunhas daquela “morte anunciada”.
Foi então que os “campistas” perceberam que de alguma forma, eles seriam a mosca convidada para almoço pela aranha. E mais evidente se tornou, quando o “crack” da III divisão apareceu e foi quase levado em ombros, pela população local. Pela forma desdenhosa como olhava os “da praia”, enquanto dava uns toques cheios de estilo, atiçava o desejo dos seus conterrâneos pela retumbância da vitória. Queriam sangue !
A imparcialidade do critério de justiça relativamente ao jogo, foi alegremente posta para trás quando o que fez de árbitro também foi escolhido entre um dos filhos da terra.
Os campistas estavam a perceber perfeitamente que se tornava impossível dar um passo atrás e dizer que já não queriam jogar. Tornar-se-iam no alvo da chacota contrária, que se eternizaria, pelo menos até quando acabassem por se ir embora.
Tinham que morrer de pé! Com dignidade! Para ao menos merecerem o mínimo do respeito por parte do antecipado e programado vencedor.
Equipas no recinto, daqueles de cimento, para andebol, futebol de salão (ali ao ar livre), e ainda com marcas, nunca usadas, para basquetebol e para hóquei.
Os cumprimentos da praxe, com o crack da III divisão a capitão do Odeceixe. O árbitro apita e a populaça grita com os olhos injectados de uma enorme confusão de sentimentos, potenciados pelo vinho de almoço de sábado. Todos a quererem ver brilhar o “menino de ouro” da III divisão.
Os campistas, alguns que pareciam estar a tocar numa bola quase pela primeira vez, ao menos num jogo “a sério” (que aquele era sério mesmo), estavam a aguentar a fúria dos outros, e os dribles do crack. A nossa defesa estava a aguentar tudo aquilo, embora o sentido do jogo fosse de lá para cá. A nossa defesa não me estava a deixar brilhar. O meu momento, ou momentos ainda estavam para chegar ! ...
Como não estavam a conseguir a avalanche de golos que pretendiam, o público começava a ficar inquieto e a resmungar e a mandar “bocas”, algumas claramente à procura do efeito que acabou por surgir daí a poucos minutos.
O árbitro, a sentir a pressão, acaba por marcar contra os campistas um penalty, por falta que não fora feita na área, nem lá perto. A populaça aplaude, achando que finalmente seria reposta a justiça do resultado, ainda que à base de “esquema”.
Os campistas a protestar que não era penlaty, e os outros a dizer o contrário, a impor o contrário pela força do número e da gritaria ameaçadora.
O jogo não me interessara em especial; tinha ido para variar naquele dia, e também ainda não tinha tido nenhum papel de importância no jogo. Também era verdade que o crack da III divisão não se notara por cima dos outros companheiros.
Voltemos à cobrança do penalty. Foi aí que eu fiquei, pela primeira vez, frente a frente com aquele astro futebolístico, que tinha toda a malta de Odeceixe a gritar por ele. Os meus companheiros a pedir-me o melhor ! o milagre ante aquele expert do futebol nacional, e quiçá internacional, senão em termos absolutos, ao menos relativos.
Mas foi aí que eu entrei no jogo. Só que à minha maneira. Não suporto injustiças, e ali estávamos a ser claramente vítimas de uma. Coloquei-me mesmo no meio da baliza, em pé, e de braços cruzados, e disse para o crack: “Essa bola não vai entrar !”
Os meus companheiro pedindo-me uma atitude mais ortodoxa, mais normal em campo, mas eu não cedi, não mudei de posição, nem descerrei os braços. E perante todo aquele impasse nem o árbitro apitava para o remate. Ao ficar claro que eu não iria mudar, os campistas conformam-se com a sua sorte. O árbitro apita, o crack avança, remata, e a bola sai ao lado da baliza. Eu nem me mexi.
Os campistas aos saltos de alegria, entre a gritaria dos odeceixenses, uns festejando já o golo que não chegou a existir e outros que berravam mais alto a pedir a repetição do penálti. Razão: porque o guarda-redes não se mexeu, e devia ter mexido.
O que eles não suportavam era que o menino de ouro, o orgulho futebolístico da terra desse tamanha fífia. Depois de muita discussão com o jogo interrompido, acabaram por avançar para a repetição do penalty, a contragosto dos campistas, como é natural. Mas o peso da casa era muito grande …
E era chegado o meu momento de glória futebolístico. Quando o crack avança novamente com a bola para a marcação, eu fui falar com ele e com o árbitro e disse: “Eu vou ficar do lado de fora da baliza. A baliza vai ficar toda aberta. Mas a bola não vai entrar”.
Novamente os meus companheiros a convencer-me para eu ser um guarda-redes igual aos outros, mas eu não cedi.
Depois de mais outro impasse, eu fiquei encostado à baliza, pelo lado de fora, e após o árbitro apitar o crack mandou a bola por cima, para as nuvens.
A população de Odeceixe gritou: “Tirem esse gajo daí ! Tirem-no da baliza !”, o que acabou por acontecer, tendo eu saído perante a estupefação de companheiros e adversários.
Acabara de ganhar fama e respeito ! Fama entre os “rapazes da praia” e respeito ante os odeceixences ! O que não se percebe é melhor não desafiar. Ou seja fora imbatível, mesmo em penalty, por duas vezes, pelo crack da III divisão !
Saí e fiquei entre o público a conversar com outra malta e a regar a minha fama a despontar. Não mais liguei ao jogo ali ao lado. O meu jogo já acabara, e eu ganhara-o. Fiquei conhecido, a partir de então, na praia de Odeceixe, por o “Guarda-Redes”.
Ah, o jogo ? Repetiram o penalty (pela terceira vez) com outro guarda-redes, e a bola entrou e o crack da III divisão brilhou. Os campistas acabaram por perder 7 – 1. Ainda marcaram golo de honra. A mim é que não me marcaram nenhum.
Apesar da derrota os campistas defenderam a sua honra, marcaram o golo de honra e tinham na equipa não uma estrela, esses são os cracks das N divisões, mas um cometa, que tem também luz, é mais fugaz e mais fatídico.
Era uma vez um jogo de futebol de verão em Odeceixe …
António Rei.


Epílogo:
Pensei em ilustrar o texto do meu amigo com lindas paisagens de Odeceixe, sítio que eu afinal não conheço, mas que fiquei com muita vontade de conhecer por causa do texto e da pesquisa que fiz na internet. Entretanto, uma pequena frase sua me lembrou de um quadro de Arpad Szenes (o pintor húngaro foi casado com a pintora portuguesa Maria Vieira da Silva), chamado Les guerriers (1938-1939)... Não resisti!



Para conhecer mais a obra tanto de Arpad Szenes quanto a de Vieira da Silva, recomendo a visita à página da Fundação Aspad Szenes-Vieira da Silva 

Visite a entrevista que António Rei concedeu a mim, sobre o estudo do Al-Andaluz, e a sua outra crônica literária, sobre o 25 de abril, aqui em LITERISTÓRIAS!

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