segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Sobre tirar a casca, mas não só...

Eu sou uma pessoa muito influenciável. Basta alguém me oferecer ou me lembrar de um gosto ou de um perfume para eu ter vontade de entronizá-los ou de trazê-los de volta à minha vida – a memória...; basta alguém desfilar na minha frente com um livro novo para eu ter ganas de lê-lo; se a pessoa narrar um pedacinho da história..., aí eu estou perdida; basta alguém que conhece minhas preferências lembrar de um filme perfeito para mim (e contar o final!) para eu me apaixonar; basta alguém sugerir um vinho para eu pegar a chave do carro e depois esquecê-la... Pois bem, voltei a gostar demais de grão de bico por causa do curso de alimentação no Antigo Egito e por causa de leituras que fiz sobre o tema, leia-se sobre o Egito, não sobre o grão[1] especificamente...
Escolhi saladas de grão de bico em bufês e achei um pacote do grão esquecido aqui em casa. Por causa dessas experiências de leitura e aprendizado, eu descobri o pacote como quem acha dinheiro no bolso da calça e resolvi preparar. Deixei os grãos pequenos de molho à noite; de manhã, sorri da sua engorda, da carinha de pássaro e peguei a panela de pressão. Antes, porém, a casca! Não lembrava se deveria tirar antes ou depois do cozimento... Resolvi tirar um pouco. Eita, trabalheira. Melhor cozinhar, vai que sai mais fácil. Panela tagarela, perfume exótico pela casa: - Filha, hoje, tem um gosto novo no almoço!
Depois do cozimento, mais trabalheira. O pacote achado no armário teria cerca de meio quilo e eu resolvi fazer apenas a metade. Mas o grão de bico dobra de tamanho, triplica?..., e eu me vi com uma bacia de gosto novo, entre o empenho e a preguiça. Reconhecendo a preguiça, alguém me propôs um socorro frágil, mas sincero: - É mesmo necessário tirar a casca? Quando na verdade deveria ter proposto: - Chega para lá e me dá um pouco para eu descascar. É por esse tipo de equívoco de expectativas – a fragilidade do socorro, mesmo sincero e a necessidade de prontidão – que muita coisa desmorona na vida. É preciso vigiar fundações e, se for o caso, construir anteparos, barragens, a barragem de Assuã! Mas, cá entre nós, era grão de bico e eu, e mais ninguém, tinha tanta vontade de dar aquela oferenda a mim mesma. – Tem sim.
Tirar a casca do grão de bico é atividade de muito amor por quem vai comer, a começar pela gente! Eu já ouvi pessoas excelentes dizerem que, porque estão sozinhas em casa, fazem qualquer coisa para comer, afinal é só para elas... É porque é para gente (acompanhada ou não) que vale a pena tirar a casca, toda a casca. Como sou imaginativa e isso sempre me vale, esforcei o coração imaginando que partiria em seguida para a Bela Festa do Vale[2] com meus grãos em tupperware.
Eu terminei a tarefa e, não contente de desnudar os grãos, ainda achei vontade para picar cebola e tomate como coadjuvantes. Não tinha pimentão. Pena. Temperei, despejei em uma travessa bonita e coloquei a oferenda bem no meio da mesa da sala. – Mãe, põe só um pouquinho... – Filha, quando a gente prova um gosto novo, geralmente convida os gostos conhecidos ou favoritos para fazerem companhia. Então, mistura com o arroz, tá?
O grão passou no teste. Eita, oferenda boa para o Ka[3] da gente! De sobremesa, tinha banana, mamão e um resto de tâmaras, compradas no Mercado Municipal depois que elas viraram minha fruta favorita (outra consequência do curso...). Tâmaras com caroço, afinal quem quer facilidade? Eu já havia provado as sem caroço e não há comparação. Guardei alguns caroços para plantar aqui no quadrado em frente de casa, onde cabem uma pereira criança, um arbusto de lavanda, salsa, cebolinha e um manacá! O quadrado é a realidade possível de um jardim sonhado.
Fazer grão de bico ensina muito a gente. Aproxima nosso ka dos kas de outros tempos – muito antigos...; exige paciência e cultivo (não tem coisa mais linda e slow food que comida que precisa ficar de molho antes de começar a ser preparada! E pelos menos 12 horas!); reclama afeto, porque o ato de tirar a casca deve ser delicado para não espatifar o grão... Grão de bico é uma comida que exige carinho antes de se tornar parte de nós, e isso é bonito e respeitoso.

Viva Aton[4]!



[1] Depois que terminei esse texto, achei que deveria escrever umas 3 palavras sobre as propriedades do grão propriamente dito. Achei na Revista Viva Saúde a seguinte informação: “De acordo com nutricionistas, o consumo de grão-de-bico pode melhorar o raciocínio, a disposição física e ainda garantir a sensação de bem-estar.” (http://revistavivasaude.uol.com.br/nutricao/mais-disposicao-com-o-graodebico/513/#) Acertei em cheio!!!


[2] Festa religiosa egípcia referenciada desde a XI Dinastia. Segundo Pedro Miguel dos Reis Filipe: “Esta grande festividade era dedicada à regeneração, memória e bênção dos que ‘partiram para o outro mundo’ e contribuía essencialmente para fortalecer os laços que uniam os vivos e os mortos” em: Deuses em festa, os grandes festivais religiosos do Império Novo, Dissertação de Mestrado em História Antiga, Universidade de Lisboa, 2011. p. 63.
[3] Uma das partes constitutivas do indivíduo para o egípcio antigo, juntamente com o corpo físico, a personalidade, a sombra, o nome e o coração. O ka precisa ser alimentado mesmo depois da morte.
[4] Deus solar singularizado em seu culto pelo faraó Akhenaton (1352 – 1336 a.C.).

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