segunda-feira, 6 de março de 2017

Memória e demolição

Essa história começou há alguns anos, desde que mudei de trajeto para conduzir a filha à escola. Nenhuma inclinação por novidades me motivou a alterar o trajeto que seguíamos; foi a proibição de conversão em uma das ruas que me fez pensar em alternativas. A alternativa que afinal considerei mais adequada incluía passar diariamente em frente à casa de uma grande amiga, o que seria ótimo, pois, mesmo que eu nunca a visse naquele horário em frente à própria casa, olhar para sua fachada era uma forma de dizer olá. Logo depois de passar por essa casa querida, eu teria de dobrar à esquerda, seguir mais alguns metros, até dobrar novamente, desta vez à direita, contornar uma rotunda e voilà: tchau, filha, boa aula!
Entre a dobrada à esquerda depois da minha amiga e a dobrada à direita, antes da rotunda, descobri uma casa azul. Uma casa toda de madeira, na esquina, pintada de um azulão, entre o meia noite e o safira..., ou seja, um azul corajoso para se ostentar pelo meio da rua. Foi amor à primeira vista.
Todo dia, encontrava novos encantos na casa: quintal com varais repletos de roupas dançantes, o que me fazia pensar na quantidade de gente que devia morar na casa, mas que eu nunca via naquela profusão; mandalas coloridas nas janelas, que me faziam imaginar que a casa era vaidosa por usar aqueles brincos bonitos; árvores, arbustos e flores em adorável liberdade, sem a coerção dos jardineiros contratados; uns tufos de gramíneas no telhado, que davam um aspecto de cabelos curtinhos e cheios de estilo... Uma casa que convidou o tempo de forma muito clara para habitá-la, o que incluía a necessidade de reparos..., mas tão bonita na sua maturidade que me parecida orgulhosa da sua decadência! Eu gostava mais dela por isso, por ser meio decadente e feliz, vestida de azul.
Todo dia, dávamos olá para a casa azul, eu e a filha. Com o passar do tempo, só eu passei a saudá-la, sob o silêncio de uma filha meio envergonhada da brincadeira; uma filha em pré-adolescimento. Mas eu sou determinada, passei até a diminuir a velocidade do carro, ooooláááááááááá, caaaasaa azuuuuuulll! E foi tanto o meu amor pela casa que inventei uma história sobre ela – a história de amigos que se encontram no portão depois de muitos anos... Não, nunca publiquei essa história.
Um dia, a amiga querida a quem eu ainda digo olá quando passo em frente à sua casa me contou que a minha casa azul estava à venda. Enviou mesmo o anúncio para mim. Não demorei a perceber que, embora precisada de cremes anti-idade de última geração ou até de enfrentar uma intervenção mais radical, a casa azul era muita areia para o meu carro popular. Encarei os fatos: a casa estava no meio de um quintal muito grande para aquele bairro, bom para construir...; estava situada em uma esquina pra lá de bem localizada... Era atraente para quem não teria o menor interesse pela sua beleza de tufos no telhado.
Mantive uma esperança de condenado: talvez a casa tivesse outros apaixonados, alguém mais abonado haveria de desposá-la para uma vida de mútuo respeito!!! Minha esperança durou alguns dias, menos do que pensei, levando-se em conta o preço anunciado... Logo, as mandalas sumiram e as janelas se fecharam.
Não descobri sozinha o destino da casa. Em um dia em que não fui levar a filha por qualquer impedimento, recebi a notícia de que pessoas se agitavam no terreno para desmanchá-la. Aquilo me fez tão triste que pedi ao mensageiro que naquele dia fatídico também buscasse a filha. Mas não consegui fugir ao enfrentamento da realidade. Um dia, eu me deparei com a casa sem teto.
Parei o carro. A filha se assustou. Mãe?... Só uma foto; só uma lembrança. Tirei duas fotos. Nos outros dias, acompanhei a demolição. Parei o carro novamente. A casa azul reduzida a uma imensa pilha de tábuas. Falei aqui em casa que queria uma das janelas de recordação, se viessem com os brincos ainda ia gostar mais! Onde você colocaria essa janela, mãe? Eu a colocaria deitada no lugar do corrimão que arranquei, só para poder acariciá-la...
Uma janela que vira corrimão é mesmo coisa da sua imaginação!...
Vi quando o caminhão começou a carregar as tábuas. Nos outros dias, a terra foi aplainada; sumiram até as flores e arbustos livres que faziam companhia aos varais. Um dia, porém, reparei que em um canto, havia uma coisa amarela no terreno sem graça. Mas a pressa me abrigou a seguir em frente. Mãe, estamos atrasadas? Só em cima da hora.
Fiquei intrigada com aquela coisa amarela, ao longo do fim de semana, e na segunda descobri que se tratava de um sofá. Um sofá amarelo-gema-caipira havia sido esquecido ali. Esquecido ou deixado de propósito? Um dos antigos moradores da casa teria deixado o sofá para algum amigo, que, naquele dia, ou no dia seguinte, passaria para pegar o presente? O fato é que se fosse o caso a pessoa demorava e, pela primeira vez, tive vontade de ter um carro maior e me converter ao crime...
 A vontade passou. Fotografei o terreno com o sofá, imaginando se descansariam ali espíritos de antigos moradores depois de um alegre sabá! Ri até da inovação do diabinho anfitrião, que escolheu um sofá amarelo para repousar os foliões dos festejos. Que animação!
Eu já me mudei muitas vezes. A casa em que morei há mais tempo é a casa em moro hoje, uma casa de que gosto muito. Esta casa é a casa da filha, entretanto, que nasceu aqui... Toda vez que pensamos deixá-la, a filha protesta e a gente se cala, em respeito. Ainda que esteja tão bem onde estou, não conheço o sentimento da filha. Meu sentimento pela casa azul defunta também não me parece semelhante ao sentimento da filha. A filha habita essa casa com suas travessuras, malcriações, sonhos e memórias; eu habitei por anos a casa azul com minha imaginação.
Ao longo desta semana, vou esperar que o sofá tenha sobrevivido à chuva do fim de semana e que seja logo resgatado pelo amigo que imaginei acima. Não estive entre os herdeiros nem da janela, nem desse sofá... Só tenho memória inventada e três fotografias: duas da minha casa azul sem o teto, o que me faz cantar a “casa muito engraçada”, e uma do sofá amarelo, que compartilho afinal aqui.

Se vou mudar de trajeto, para não confrontar meu luto com o espírito de seguir adiante, concretizado por uma nova edificação? Vou continuar meu caminho, levando a casa comigo, afinal quem é que me garante que aqui, onde estou, na casa da filha, não se organiza uma rave de espíritos inquietos das antigas edificações sufocadas, quando a gente tira férias e vai viajar, ou quando vai dormir?

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