segunda-feira, 17 de abril de 2017

“O seu lugar” e o “lugar à parte”: considerações sobre a disposição das coisas

Já escrevi sobre a aventura maravilhosa de ter epifanias diante do conhecido: filmes revistos, livros relidos, gente reencontrada! Não sei quantas vezes ouvi e li o capítulo 20 de João, versículos de 1 a 10, mas ontem me pareceu particularmente emocionante ouvi-lo da boca de um dominicano e de certa forma engraçado reparar na disposição dos panos que cobriam o corpo de Jesus, quando eles já não o cobriam.
O fragmento a que me refiro é muito conhecido:

"1.No primeiro dia da semana, Maria Madalena veio ao sepulcro, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, e viu que a pedra tinha sido removida do sepulcro. 2. Então foi correndo até onde estava Simão Pedro e o outro discípulo a quem Jesus amava e disse-lhes: “Tiraram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o puseram!” 3. Pedro saiu com o outro discípulo e foram ao sepulcro. 4.Corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro. 5.Inclinando-se, viu as faixas de linho no seu lugar, mas não entrou. 6. Depois chegou Simão Pedro, entrou no sepulcro e viu as faixas de linho no seu lugar 7. e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus. O sudário não estava com as faixas de linho, mas enrolado num lugar à parte. 8. O outro discípulo que chegou primeiro entrou também, viu e creu. 9. De fato, eles ainda não se haviam dado conta da Escritura, segundo a qual era preciso que Jesus ressuscitasse dos mortos. 10. A seguir, os discípulos voltaram para casa."[1]

Há coisas muito significativas em um trecho tão visual: madrugada, ainda bem escura; pessoas correm, umas são mais velozes que outras, mas as velozes não são necessariamente as mais corajosas; o encontro dos panos: “um no seu lugar”, duas vezes referido, e o pano que envolvia o rosto dobrado em separado, “num lugar à parte”.  Os outros evangelhos vão dizer que Madalena não estava sozinha em seu intento de ir cedo ao sepulcro, fora com amigas: Maria, mãe de Tiago, Salomé... e afirmam também que tinha a intenção de ungir Jesus, levava perfumes... Mas João não quer saber desse tipo de enredo: deixa Madalena só, a descobrir e a propalar aos discípulos.
Domingos de Gusmão tinha particular apreço por ela! Tomás de Aquino soube ler o fragmento que destaquei como ninguém, ao reconhecer o protagonismo da personagem como testemunha e anunciadora. Não é à toa que os dominicanos vão buscar nela a inspiração para sua identidade como predicadores. Esse fato conhecido por mim teve outro nível de internalização hoje, quando eu o ouvi pela voz de um dominicano. Eu nunca tinha ouvido esse trecho lido por deles? Não sei dizer, talvez..., mas só ontem o meu conhecimento encontrou a minha emoção.
Volto à cena. Quando Madalena fala a Pedro e ao discípulo que Jesus amava, ela acusa: “Tiraram o senhor...” e usa a primeira pessoa do plural: ”não sabemos”, um indício fraco de que não estava sozinha. Digo fraco, porque só me sirvo de traduções. Os outros evangelhos, porém, fortalecem a pista. O clima é de insegurança geral depois do processo, da condenação e da morte de Jesus, assim entendo a acusação, que na verdade é um pedido de ajuda. Os homens se apressam.
Pedro é velho, portanto perde na corrida. O discípulo que Jesus amava chega primeiro e vê o linho “no seu lugar”. Adoro essas coisas no texto bíblico... Que lugar???? O lugar desse linho não era no corpo de Jesus?! Sempre visualizei esse “lugar” como o chão. Imagino as tiras jogadas, fazendo um montinho, mas nunca reparei, pois cheguei ainda mais atrasada que Pedro rsrsrs, nesse “seu lugar”. Para piorar tudo, o sudário, ou seja, o tecido que cobria o rosto, fora colocado não no “seu lugar” (ufa, mais uma confusão, pois o lugar seria a cabeça...), mas “à parte” (?!).
Depois que não encontram o corpo de Jesus, o que fazem esses dois amigos de Madalena, a quem ela foi pedir ajuda? Vão para casa!!! Ela fica só e chora. Vê dois anjos, que revelam algo interessante sobre esses lugares que me despertaram interesse: um deles está disposto onde estaria repousada a cabeça de Jesus e o outro, aos pés. Logo depois, Madalena vê Jesus, mas ela não o reconhece, pensa que é um jardineiro (João sabe ser engraçado...), confronta-o, até que ele a chama: “Maria” (versículo 16). É muito bonito isso, um dado de intimidade, talvez só ele pudesse dirigir-se a ela nesses termos, da afirmação de seu primeiro nome, um reconhecimento de quem é muito próximo. Imagino que ela quer abraçá-lo, mas ele evita o contato: “Não me retenhas porque não subi ao Pai” (versículo 17).
Mas vamos lá, à disposição das coisas. Então, os anjos me informam que o linho que envolveu o corpo de Jesus estava no limite desse corpo, que assumo como sendo o “seu lugar”, entre a cabeça e os pés. Mas e o sudário? Uma das coisas que mais me encantam nesses escritores de tradição hebraica, e que encantou Eric Auerbach[2], é a sua concisão. Ela me permite imaginar muita coisa. Vejo Jesus acordar e mover as suas mãos em direção ao rosto. Tira primeiro esse tecido. Sua fraca humanidade (acabou de ressuscitar!) quer respirar e ver onde está. Remove esse tecido com surpresa, ainda hesitante. Está escuro à sua volta, portanto não pode depositar esse sudário no lugar (????), então o põe à parte, onde alcança. Mas e os linhos que envolvem seu corpo? Trata-se de um homem adulto, pleno, imagino uma quantidade razoável de tecido. Jesus se desprende e levanta..., os tecidos caem onde está, afinal, o lugar! Os olhos querem ver. Só é possível se a pedra for removida. Para um homem que acabou de ressuscitar, o que é um pedregulho?! É óbvio que não tem o menor interesse em fazer arrumações. Deixa a morte para trás.
Sei o que estão a pensar: sai vestido ou desnudo? Não sei. O que sei é que quando aparece à Madalena, não é a sua (falta de) compostura que a surpreende, mas decerto Jesus está diferente. Ela só pode reconhecê-lo pela palavra que apenas ele saberia proferir... Maria. Essa palavra é nome do reconhecimento.
 João deixa um espaço imenso à minha imaginação. Eu o cubro com a humanidade, pois só posso imaginar com o meu repertório, afastado do divino. A concisão pode ser calculada, portanto. João pinta o céu/cenário, põe seus atores a correr, a mulher a chorar... tem muito drama na cena! Diz que os homens foram para casa, só Madalena fica. João afirma que só com ela está a coragem. Põe Jesus a dizer a palavra mais íntima, quase um sussurro, que só alguém próximo está autorizado a emitir.
Toda essa história de “seu lugar” e “lugar à parte” é puro diletantismo meu, quando o mais importante é o que Madalena haveria de anunciar? O que aconteceu dentro do sepulcro é um drama sem testemunha. As tiras e o sudário, porém, na sua diferente disposição, são as únicas pistas para um mistério: a vida vencer a morte, ou simplesmente um corpo enfaixado acordar surpreso e hesitante, ávido de liberdade. Esses panos são o testemunho mais vivo do que sucedeu lá dentro.
Só posso invejar o narrador de João e a extraordinária solução narrativa de representar o movimento dramático pelo detalhe ínfimo, a diferença desses panos jogados lá no texto.

A Ressurreição de Giotto




[1] Bíblia Sagrada (51ª ed.). Petrópolis (RJ): Vozes, 2012.
[2] Em Mímesis.

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