segunda-feira, 10 de julho de 2017

As Cavalhadas do distrito de Brumal (2017), espetáculo de beleza e união da comunidade

No dia 2 de julho último, aconteceu no distrito de Brumal, município de Santa Bárbara (MG), a 80ª edição das suas Cavalhadas. Viajei especialmente para acompanhar e documentar a festa, regida por um “maestro” que há 61 anos integra a mesnada[1], falo de Divino Lúcio.

(foto do livro de Dilce Mendes, p. 6, realizada por Moacir Nunes)


Conheço bem a festa por leituras e experiência própria, pois já estive na cidade de Guarapuava (PR) para acompanhar a manifestação que, no ano em que lá fui, envolveu cerca de 600 pessoas, entre atores, cavaleiros e comunidade vestida “à moda medieval”! Como medievalista, tenho grande consideração por tudo o que promove a curiosidade das pessoas para o estudo dos modos de viver desse largo período ainda hoje marcado pelo desconhecimento e pelo preconceito. Quem já não ouviu ou leu (!) a famigerada expressão “Idade das Trevas” associada à Idade Média? Pois é, o que vi em Brumal foi luz e cor, o que há de mais próximo dos vitrais de uma catedral gótica...

Segundo Dilce Amara Mendes:

a festa [em Brumal] foi criada pelo tropeiro Jorge da Silva Calunga, natural de Morro Vermelho, distrito de Caeté. Em meados de 1936 mudou-se para Brumal com toda a família. Tropeiro, foi trabalhar numa fazenda onde conheceu Amaro Antônio Luiz, que exercia a mesma profissão. Após terem uma graça alcançada por Santo Amaro, os amigos decidiram realizar a cavalhada em sua homenagem, seguindo as características da festa existente na terra de origem de Jorge.[2]

O cavaleiro Divino Lúcio a quem me referi no primeiro parágrafo é filho de Amaro Antônio Luiz. Dilce Amara Mendes é a organizadora do belíssimo livro Brumal mostra a cavalhada, obra bilíngue (português e inglês), repleta de depoimentos e de fotografias. Segundo um de meus informantes, praticamente toda a comunidade de Brumal tem em casa um exemplar da obra. Trouxe para a minha casa o exemplar desse meu informante, não surrupiado, mas ofertado.

Creio que muita gente sabe a origem da festa. Ela remonta à Reconquista, um conceito controverso, mas operativo, que enfeixa relações vivenciadas na Península Ibérica, durante a Idade Média: expansão territorial (por sobre os territórios conquistados pelos muçulmanos depois de 711); confronto bélico; expansão do poder político cristão; substituição de modos de viver radicados nas relações feudo-vassálicas, nobreza bélica e suporte ideológico[3]. Desse conteúdo ideológico, faz parte o universo da guerra justa e da guerra santa. A Reconquista teve como seu guardião espiritual, São Tiago, cujas relíquias encontradas na Galiza no início do século IX fortaleceram a coesão das populações cristãs frente ao domínio mouro.

Todos sabemos como essa história terminou: a conquista cristã do reino mouro de Granada marca (para mim) o fim da própria Idade Média na Península Ibérica, em 1492. A Reconquista não se confunde com a Idade Média Ibérica, mas é um de seus elementos constitutivos mais estruturais. É evidente que uma vitória tão retumbante do cristianismo, frente a uma presença que durante séculos foi culturalmente mais brilhante haveria de ser evocada e comemorada de muitas formas. Assim, nasceram as cavalhadas.

Elas habitam o diversificado repertório cultural trazido pelos portugueses ao Brasil. Mas se no medievo a sua base de realidade pingava sangue, hoje no Brasil essa festa agrega as pessoas e promove a paz:

·        Com o passar dos anos, para mim, a Festa de Santo Amaro se tornou o momento de encontros. Momento de Brumal e sua gente se reencontrar. Gerações que haviam se mudado retornavam e, juntas, traziam seus filhos. (depoimento de Murilo Nazário)[4];
·        A Cavalhada de Brumal (...) promove e fortalece o que é o maior legado desta festa: o sentimento de pertencimento comunitário da Vila. (depoimento de Viviane Corrado de Andrade)[5]

Cheguei a Brumal no dia 1º de julho, sábado, e pude acompanhar a preparação do terreno em que se daria a corrida.

No dia 2, continuei a observar e a documentar a instalação de barracas, bandeirinhas e ornamentos vários. Visitei o recém inaugurado Memorial da cavalhada[6]. Esse espaço é bem organizado e oferece informações claras ao público. Na entrada, um grande mural contextualiza a Reconquista, a chegada do tema ao Brasil e a festa, a Brumal. Ao longo de um corredor, é possível contemplar a galeria de cavaleiros e notei logo que essa tropa é formada por homens de diferentes idades, que vão assumindo o lugar de seus parentes. Achei interessante esse resíduo nobiliárquico! Sabemos que no medievo a cavalaria não se confundiu sempre com a nobreza. A princípio, nem cavaleiros havia!, o que havia eram guerreiros, homens armados, milites, como surgem nos documentos. Esses homens foram se transformando e sendo transformados até um contexto em que príncipes e reis não se contentariam com seus status, queriam ser cavaleiros e assim foram feitos, sobre o chão das batalhas e em cerimônias faustosas ou mesmo simples[7].

O Memorial acolhe o figurino dos cavaleiros e, na varanda dos fundos, podemos ver dois imensos bonecos feitos em tecido que representam o cavaleiro cristão e o cavaleiro mouro. Há também uma boa cozinha e um salão onde os cavaleiros jantariam depois da festa. Ainda não era hora do almoço, mas o trabalho estava fervendo ali.

Segundo apurei, a casa em que funciona o Memorial foi cedida para esse fim e as pesquisas e obras que o viabilizaram foram resultado de uma parceria entre a prefeitura de Santa Bárbara e uma mineradora. No dia de minha visita, conheci o Prefeito Léris Felisberto Braga, entusiasta das cavalhadas. Conversamos um pouco, falei das razões de minha visita e ouvi alguns de seus planos. Observei depois que ele prestigiou toda a festa e perambulou no meio do povo. Em tempos de tanto descrédito político, achei inusitada a relação amistosa e aparentemente próxima entre ele e os moradores do distrito.

Participei da missa campal, em homenagem a Santo Amaro, o “São Tiago” do presente de Brumal. Santo Amaro não é “matamoros”[8], é o amigo de São Bento, portanto jamais soube em vida o que era um mouro[9]... Em janeiro deste ano, quando visitei o Santuário do Caraça, eu havia conhecido a pequena e bela igreja barroca construída em sua homenagem. Segui a procissão, guiada pela imagem tricentenária. Tudo isso constitui a agenda das cavalhadas de Brumal.

Havia muitos cavaleiros em Brumal para as Cavalhadas, não necessariamente participantes da “campanha”. Destaco os cavaleiros do município de Raposos (MG), chamados de “Cowboys da amizade”, entre outros e mesmo mulheres que participam de cavalhadas femininas, que gostaria muito de documentar um dia! Essas mulheres ajudaram no momento do trançado das fitas, manobra realizada pelos cavaleiros de Brumal.

No fim da tarde, a entrada da tropa de Divino Lúcio no terreno foi anunciada com papel picado colorido e muitas palmas. Um pouco antes, os organizadores distribuíram pequenos lenços para que o público pudesse acenar para os cavaleiros.


A mesnada foi composta por 34 cavaleiros, liderados pelo comandante. No princípio, foram realizadas as embaixadas, que são uma espécie de profissão de fé da “campanha”. Os cavaleiros treinam a fala e o microfone ajuda a gente a entender algumas frases. É importante lembrar que falam enquanto exibem a destreza a cavalo e “confrontam” o comandante, empinando a montaria. Várias coisas juntas...

(...) completei idade e fui convidado pelo meu pai a fazer parte da cavalhada como cavaleiro. Comecei acompanhando, correndo, até que chegou o dia de ser embaixador. Foi com orgulho que treinei e decorei a embaixada. Para mim tudo isso é muito especial porque é tradição de família. (depoimento de Luciano Bernardo Luiz, filho de Divino Lúcio e neto de Amaro Luiz) [10]

(Foto do livro de Dilce Mendes, p. 72, realizada por Marcos Leg)

Depois começaram as evoluções do grupo. Como foi a primeira vez que vi o espetáculo, não posso afirmar que a “coreografia” tenha mudado ao longo dos anos[11]. Taí uma pergunta para fazer em uma próxima visita a Brumal. No excelente livro organizado por Dilce Mendes também não encontrei pista disso, a não ser algumas imagens em que cavaleiros empunhavam espadas. Assim, sobre o que vi, posso dizer que na edição de 2017 das cavalhadas de Brumal não vi jogos (como por exemplo, lançamento de arco em argolas), mas evoluções, como a trança das fitas e outros movimentos realizados por cavaleiros cristãos e mouros de forma colaborativa. Mesmo quando o locutor anunciava que o movimento significava um combate, os cavaleiros não emulavam a luta, mas executavam um “ballet” em que se misturavam cristãos e mouros. Essa foi para mim a mais significativa renovação da memória e da História! As cavalhadas em Brumal celebram para o público – da comunidade ou para os turistas – que é possível cavalgar junto, na diferença. Não sei ao certo se as pessoas que prestigiam o evento e que aplaudem a destreza dos cavaleiros têm consciência disso. Mas se esse “ballet” tiver despertado o interesse de visitar o belo memorial e ler um pouco mais a respeito da Reconquista, as cavalhadas, realizadas em nosso país, em diversas localidades do Brasil, terão cumprido um papel importante de promoção do conhecimento de uma realidade específica, radicada no medievo, e de como tradições podem ser renovadas e transformadas!

Ora, mesmo quando há disputa entre cavaleiros, refiro-me às praticas em outras cavalhadas, ao final, o que se promove é a paz; é a possibilidade de congraçamento. Em Brumal, depois da festa, cavaleiros mouros e cristãos sentam-se à mesma mesa e como afirmou Isidoro de Sevilha (séculos VI e VII) em sua Regra: “não pode haver uma mesa comum para os que não partilham do modo de vida”[12]. No período das Cavalhadas, a comunidade de Brumal se reconhece nessa mesa comum.

Um dos segmentos mais significativos do livro de Dilce Mendes é a recolha dos depoimentos das crianças, entre os quais eu destaco o de Gleison: “Sou um cavaleiro mirim e, quando eu crescer, vou ser um cavaleiro de verdade e representar os mouros e cristãos na Cavalhada de Santo Amaro”[13]. Na declaração do menino, leio a vitalidade das cavalhadas e uma promessa a ser fortemente levada em consideração no mundo em que vivemos... Gleison não se importa em ser mouro ou cristão, quer ser cavaleiro! Acho que ele compreendeu tudo.


Epílogo:
Em janeiro de 2017, estive no Santuário do Caraça com minha família. Era um sonho antigo meu! Lá conheci o Padre Lauro e Sílvio Quirino Pereira, funcionário do santuário. Graças a Sílvio, conheci a igrejinha de Santo Amaro, segui a procissão do santo em janeiro e fiquei sabendo da realização das cavalhadas em julho. Sílvio me acolheu em Brumal; hospedou-me; levou-me a todo canto; apresentou-me a pessoas, ao prefeito de Santa Bárbara e à sua família: a esposa Joana, as suas meninas Fran e Sabrina, seus netos Arthur e Calebe, suas irmãs Geralda, Márcia e Margarida, seu irmão Pedro e a esposa, Mariza, que preparou nosso café da manhã. Esse texto não existiria sem o seu acolhimento amigo que me fez me sentir parte da família, como uma prima que mora em outra cidade e que vem rever os seus sempre que pode. Obrigada, Sílvio. Agradeço também à minha mãe, que largou suas coisas, seu gato (felino mesmo rsrsrs), para me acompanhar e segurar a minha mão no avião.

Pergunta: quando mesmo serão realizadas as próximas cavalhadas, comunidade de Brumal?

Confira o álbum em: https://www.facebook.com/marcella.lopesguimaraes/media_set?set=a.936714086468480.1073741906.100003896911130&type=3&pnref=story 


[1] Tropa.
[2] MENDES, Dilce Amara Margarida (org.). Brumal mostra a cavalhada. Santa Bárbara (MG): Associação Comunitária de Brumal, 2013. p. 4.
[3] Sobre o tema da Reconquista, sugiro o excelente texto de García Fitz: GARCÍA FITZ, Francisco. “La Reconquista: un estado de la cuestión”. Revista Clio & Crimen 6, p. 142-215, 2009. Disponível em: https://www.durango-udala.net/portalDurango/RecursosWeb/DOCUMENTOS/1/1_1945_3.pdf ; acesso em 6/07/2017.
[4] MENDES, Dilce Amara Margarida (org.). Brumal mostra a cavalhada. Santa Bárbara (MG): Associação Comunitária de Brumal, 2013. p. 16.
[5] Idem, p. 25.
[6] O Memorial foi inaugurado em 23 de junho de 2017.
[7] Sugiro o pequeno livro de Jean FLORI: A cavalaria. A origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo Madras, 2005.
[8] São Tiago foi chamado assim no medievo, quando atuou como “patrono” da Reconquista.
[9] Maomé teve revelado o conteúdo do Alcorão entre 610 até a sua morte em 632, portanto depois da existência histórica de Amaro (ou Mauro) e Bento.
[10] MENDES, Dilce Amara Margarida (org.). Brumal mostra a cavalhada. Santa Bárbara (MG): Associação Comunitária de Brumal, 2013. p. 18.
[11] No mural que cobre o 1º aposento do Memorial, há os esquemas das evoluções.
[12] Retirei o trecho do excelente livro do meu amigo Renan FRIGHETTO: A comunidade vence o indivíduo: a regra monástica de Isidoro de Sevilha (século VII). Curitiba: Prismas, 2016. p. 191. Lembro-me que quando li os originais da obra, “obriguei” meu amigo a colocar esse trecho como epígrafe. Pois não é que ele me atendeu?! É a epígrafe de sua conclusão.
[13] MENDES, Dilce Amara Margarida (org.). Brumal mostra a cavalhada. Santa Bárbara (MG): Associação Comunitária de Brumal, 2013. p. 24.

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